quarta-feira, junho 11, 2014

Entrevista a Alice Sampaio, in JLA (1963)

Entrevista publicada no Jornal de Letras e Artes, 17 de Julho de 1963, pp 1-14. Transcrita para efeitos de memória bibliográfica.

Alice Sampaio: Creio no real e busco-lhe o significado
Aventura a um tempo científica e metafísica, a intriga de «O Aquário» afirma o dom de fantasia de Alice Sampaio, que, após ter-se revelado com «A Cidade Sem Espaço», atenta observadora do quotidiano, comete agora os domínios da Humanidade futura. Arrojada aventura, que nos transporta a um mundo de robots e super-homens, cuja faculdade de amar se atrofiou, mas que conservam a nostalgia da comunicação perfeita. Obra diversa do habitual, colocará possivelmente crítica e pública numa atitude de perplexidade. Porque se trata de um romance inteligente e original, sejam quais forem os seus defeitos de composição e estilo, entendemos dever procurar Alice Sampaio, a quem começámos por perguntar:

- Qual o tema central de «O Aquário»»?

- Atendendo a que escritor, obra e leitores foram um todo, creio ser quase inútil interrogar um sem os outros. E eu gostaria de deixar ao cuidado desses leitores, se existirem, o encargo de me darem conta desse tema. Pretendi, na forma mais artística possível, contar uma história que fosse simultaneamente uma conversa inteligente – a autora simples parceira ou comparsa – e onde se pusessem perguntas, mal ou bem, a que outros deveriam responder, mal ou bem – uma larga discussão, «un amusement», se me é permitido. Quer isto dizer que me nego a colaborar na construção dum «tempo presente» válido e concreto? Nada disso! Estou convencida, sim, de que os homens de todos os tempos ajudaram a formar o homem de hoje. Então – pergunto -, por que razão não podemos colaborar na construção do homem futuro, pondo problemas do homem actual? (Tentei pôr problemas do homem actual, embora servindo-me de um mundo a mil léguas de distância, menos que hipotético mas nem por isso destituído de «real»).

E se no dizer de Bertrand Russell, o importante para o homem não é responder a todas as perguntas que porventura se ponham ao seu espirito mas sim formulá-las, se a cada era competem específicas perguntas (Copérnico não saberia interrogar-se sobre a face invisível da Lua), então – repito – que fazer de nós quando possuidores de um «spaac», ou seja do tapete-mágico? Perguntas talvez inúteis, talvez descabidas, mas que insisto em fazer. Qual o tema de «O Aquário»? Aguarda pacientmeente as respostas dos leitores.

- Considera-se uma escritora realista? Em que corrente ou tendência se sente integrada?

- Que significa ser-se classificado ou catalogado como escritor realista? Dar a primazia à solução dos problemas de ordem material, no sentido restrito e simultaneamente largo de que todos tenham pão para a boca? Sem dúvida, é isso o primeiro grande passo do homem. Contudo, afigura-se-me impossível resolvê-lo sem nos decidirmos a fazê-lo e, para que essa decisão seja tomada, há que resolver muitas outras que se nos põem simultaneamente e a diferentes níveis. Eu interrogo: Porque tudo é construir. Sou nesse caso uma escritora realista? Parece-me que sim. Tenho um Credo que enuncio: Creio na Matéria-Toda-Poderosa – no «real» portanto – e busco-lhe o significado, a dimensão, a forma, a tonalidade e a ausência de colorido, o som e o silêncio – quereria saber-me por instantes apreendendo-a totalmente, que a minha inteligência durante um ínfimo segundo compreendesse e me deixasse dizer: vejo, escuto – que a minha sensibilidade e imaginação, rodeando-a por todos os lados, às tantas acabasse mesmo por lhe desvendar um dos milhares de segredos tão ciosamente guardados. Não, um laboratório, com a sua rigorosa aparelhagem, não me seria de grande utilidade – a fantasia nega-se à rigidez dos métodos de uma investigação verdadeiramente científica. E eu desejaria sobretudo que o meu livro fosse Arte e não Pseudo-Ciência). E, porque compreender o «real» é caminhar no sentido da Metamorfose, o simplesmente Humano a transformar-se em Humano e Mental, a Irritabilidade em Inteligência, o Domínio da Natureza (longe de mim a ideia de fazer de Pitonisa, ou de Sábio-das-Sete-Partidas, ponho apenas afirmações como hipóteses, suposições como intuição poética – chamemos-lhe assim) – eu quereria compreender esse «real».

Que podem significar entretanto os termos realistas, neo-realista, surrealista, etc, senão denominações da mesma busca, da mesma vontade deliberada de transcender-se? (Os homens de todos os tempos inventaram deuses não por brinquedo ou desejo de mergulhar no obscurantismo, antes pelo contrário... Temos necessidade dos nossos deuses, ultrapassá-los dialecticamente, reinventar outros, sempre, «ad infinitum»).

Em que escola ou tendência me sinto integrada? Aguardo que alguém de boa-vontade queira catalogar-me, arrumando-me com toda a sem-cerimónia na prateleira que for mais conveniente.

- Acredita num nexo entre o romance e o local ou o tempo em que vivemos?

- O local onde hoje vivemos é a Terra inteira, um pequeno globo que os astronautas vêem atráves de écrans-visores e dizem ser raro e fantástico esferóide girando lento e imperturbável, brilhante e escuro, para lá de querelas e diversões, mares ou continentes. O «local» do romance, o seu «tempo» apoucam-se assim, visto, através da tele-objectiva, os indivíduos dão-se conta de um universo hertziano, onda média e curta até aqui desconhecido... E os diferenciados problemas do nosso «habitat» tornam-se menos diferenciados: em toda a parte os seres se agitam no mesmo febril Movimento: crescer e transformar-se. É certo: há zonas de cultivo especiais e... experimentais, onde a vida se processa num diapasão mais vibrante, outras onde se alongam ainda abutres de miséria e vergonha – que o Céu se compadeça e as criaturas arranjem unhas se defender e livrar do Mal, «amen». São os meus votos mais ardentes.

- Não será a sua resposta ainda o resultado de um meio social...?

- Acha que isto é ainda o resultado do meio social que nos condiciona? Um processo de evasão – quando tudo deveríamos fazer para assentar bem os pés na terra (terra essa que pode ser uma nebulosa qualquer...) – dizermo-nos a cada passo que há foguetões interplanetários prontos a largar para o Cosmos e levar-nos em belíssimo pasesio [sic] Pólo-Norte-Pólo-Sul-da-Galáxia? (Que afinal a Imaginação é o elemnto perturbador da pacata ou preocupada vida burguesa). Possivelmente...

- Projectos?

- Continuar a interrogar, insistir em contar histórias a pessoas mais ou menos desinteressadas, mais – quem sabe? – talvez às tantas acabemos por levar-nos a sério, mutuaente, narrador e ouvintes.

Preparo um romance em grande-estilo, quero dizer, uma longa narrativa, à antiga, realista ou não, continuação da mesma busca – noutro tom (para não maçar demasiado). Antes disso desejaria publicar uma peça de teatro, duas peças de teatro, três peças de teatro, que aguardam numa gaveta, prontas a passar ao prelo, à falta de cena...

Faço à Humanidade esta dádiva de imaginação – que não me foi solicitada, valha a verdade. Se a Humanidade do meu breve tempo, do meu reduzido espaço a recusar – que fazer de mim?

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