sábado, maio 17, 2014

«Observações a respeito da ficção-cientifica», por Lúcio Câmara, in JLA (1966)

Texto publicado no Jornal de Letras e Artes, Ano V, n.º 231, de 2 de Março de 1966, nas pp. 5-6.

Transcreve-se para efeitos de memória bibliográfica.

Fez-se a (reduzida) actualização da ortografia (mas não para o AO 1990). Manteve-se o duplo uso da designação de «ficção científica», com e sem hífen.


Observações a respeito da ficção-cientifica

por Lúcio Câmara

A suspeita com que se tem encarado tanto o romance policial como a ficção-científica (admitindo dentro desta designação o romance de antecipação), coloca-nos perante uma situação singular, que consiste no desprezo a que está votada uma produção literária de grande volume e de grande influência. Poder-se-à dizer, e não sem razão, que o problema da quantidade não encontra correspondência na qualidade. Com efeito dificilmente se poderá apontar um romance policial que seja, ao mesmo tempo, um grande romance (a não ser quando é transcendido pela obra romanesca de qualidade, como pode suceder em «L’Inquisitoire» de Robert Pinget).

Ora se o romance policial é essencialmente o romance da razão, um romance de formação caracterizadamente positivista, qual a posição que vem ocupar, no quadro das literatura populares, o romance de ficção científica? É que se, na verdade, o romance policial procura submeter o comportamento humano a exames, a mensurações, a regras de construção que se racionalizam, a ficção científica procura antes uma expansão dos sentimentos num espaço novo, buscando por conseguinte uma penetração em meios ainda inexistentes, mas encarados como de provável existência.

Assim sendo, enquanto o romance policial parte de hipóteses plausíveis para uma prova organizada racionalmente, na medida em que pondera os dados do problema (o que, neste sentido, pode afoitamente dizer-se que o romance policial acredita, como Leibnitz, na existência de constantes sociais que fornecem à sociedade uma organização científica), a ficção científica processa-se em sentido contrário: parte de um dado racional para as hipóteses plausíveis que nos fornecem um universo completamente novo.

Pode constatar-se assim que tanto o romance policial como a ficção científica possuem um dado comum: a sua construção literária está sempre estreitamente ligada à vida, de modo que só os comportamentos vividos, experimentados, fornecem a trama espessa na qual se enredam todos os movimentos, todas as pessoas. No que eles se afastam do romance tradicional é no facto de a experiência dos ramancistas (sic) tradicionais se estribar acima de tudo numa educação estética que os corta, em parte não dispicienda, dos factores mais relevantes da vida moderna.

Considere-se o menosprezo a que estão votados, por quase todos os romancistas do nosso tempo, os problemas cientificos, e até os do progresso técnico. O romance continua apegado a dogmas e a valores que eram válidos para Balzac no tempo em que um tanoeiro podia fazer fortuna administrando com prudência (com avareza) os proventos da sua pequena actividade artesanal, enquanto hoje será muito difícil ao artesão conseguir chegar aos mesmos resultados pelos mesmos processos, na medida em que interveio uma organização de produção, que deriva directamente da aplicação prática de conhecimentos técnico-científicos.

Ora praticamente desde 1800 (data em que começa a desenhar-se, com o seu perfil actual, a chamada revolução industrial) que o homem vê constantemente alterados os dados essenciais da sua vida por via de processos técnicos completamente novos e que, por sua vez, se baseiam numa organização científica, de investigação, que não conhece fronteiras e que tem tendência a alargar-se sempre mais. Ora sucede que sendo o factor cientifico um dos mais influentes na caracterização da nossa vida moderna, os romancistas tradicionais se furtam a considerá-lo, na medida em que a sua escrita se baseia antes de mais em dados de sensibilidade e de ideias.

A contribuição mais importante, portanto, da ficção científica, assenta no alargamento dos quadros literários graças à introdução de elementos novos que têm a sua raíz no domínio da tecnologia. A sua imaginação baseia-se sobretudo nas conquistas e nas hipóteses sugeridas pela ciência moderna e não será inútil, por isso, frisar que alguns dos seus melhores cultores são professores universitários. É o caso de Isaac Asimov (de resto um dos autores mais traduzidos em português), que é professor assistente de bioquímica na Faculdade de Medicina de Boston). Assim os elementos novos introduzidos no sangue rico e fremente da literatura, derivam de um contacto íntimo com o próprio domínio cientifico.

Isto não evita, é evidente, que se possam fazer acusações à ficção científica, na medida em que ela nos não deu ainda um grande romance, nem sequer aquele tipo de romance derivado, como sucede no policial com Robert Pinget. A psicologia é muitas vezes primária, para não dizer simplesmente ingénua, o estilo não tem qualidade literária e a complexidade das formas de existência reduz-se a uma simplicidade que em nada acompanha as formas complicadas da nossa existência quotidiana.

Todavia estes defeitos são facilmente compensados pelo conhecimento que os romancistas de ficção científica revelam do seu mundo próprio, pela maneira apaixonante como articulam os dados da tecnologia, procurando desvendar as influências que ela terá no futuro, tanto no nosso mundo terrestre como nos outros mundos de que o homem se for aproximando, e que acaso venha a ocupar. É neste campo específico que devemos considerar a ficção científica para lhe não exigir aquilo que ela ainda não pode dar, pois se deve considerar que se trata de um género literário novo. Decerto possui ela os seus antecessores, como é o caso de Júlio Verne, de Poe, de Wells, de Aldous Huxley. Mas na verdade só depois de Hugo Gernsback ter publicado em 1926 a primeira revista consagrada à ficção científica é que se viu aparecer uma produção avultada de romances que apenas se podem classificar dentro desta rubrica e de autores que não escrevem senão ficção científica.

Por outro lado constatamos que surgiu rapidamente um público e podemos fazer corresponder facilmente os dois fenómenos, na medida em que a tecnologia moderna provou mudanças profundas no substracto da vida social tanto no plano estético, como no plano ético. Baste pensar-se que a política de pleno emprego, que hoje os governos de quase todo o mundo põem na primeira linha das suas preocupações, deriva da pressão exercida pelo operariado a partir do craque de Nova Iorque (1929), mas também, e talvez sobretudo, das imensas possibilidades de emprego da mão-de-obra qualificada que foram abertas pela aplicação dos conhecimentos cientificos à produção de artigos de consumo corrente.

Assim os progressos espectaculares que se verificam no domínio da física, da química, da electrónica, provocam o aparecimento de novos produtos, a organização de novas organizações de produção, criam novos laços entre o homem e a técnica; do mesmo passo a estética organiza-se num sentido diferente daquele que era o tradicional, pois que os tecidos tornados possíveis pelas fibras sintéticas (por exemplo), possuem gamas e qualidades muito diversas dos tecidos tradicionais, etc. O homem está assim enredado numa teia de conquistas que pouco a pouco o modelam de forma diversa da tradicional.

A ficção científica não se dará ainda conta de todos os matizes, muitas destas vezes subtilíssimos, destas alterações surgidas na estrutura psicológica, mas é capaz de compreender e descrever o impacto destas mudanças no sentido mais grosseiro, deixando-nos compreender os elementos que intervêm directamente nas alterações. E, sobretudo, sabem dirigir-se ao futuro e ao espaço para se interrogaram quanto ao que será a evolução do homem, dado o contínuo progrsso tecnológico que distingue a nossa vida da vida dos nossos antepassados (dos nossos antepassados próximos, note-se bem; bastará comparar a vida dos nossos dias com a da metade deste século XX, bastando para isso assistir à passagem de alguns documentários cinematográficos dos anos 20).

Quando nos debruçamos sobre alguns dos problemas que preocupam os romancistas da ficção científica encontramo-nos perante inquietações que são as nossas de todos os dias; consequências provocadas pela cibernética, por exemplo, que virão alterar, no tempo e no espaço, as nossas concepções morais e políticas (logo económicas, visto que alterarão todo o circuito clássico da produção); governo mundial, opondo-se a tentativas de aniquilação tornadas possíveis pela fragilidade da inteligência de alguns governantes que podem controlar meios de acção demasiado poderosos; conquista da lua e de outros planetas, provocando uma rearticulação nova do homem com o espaço sideral (e rearticulação tão cheia de consequências como a que deriva das conquistas de Galileu, de Newton, etc.)

É assim que ganha corpo a ficção científica: o avião supersónico é uma realização cujas consequências ainda não podemos medir inteiramente, mas o romancista procura já articulá-lo com um futuro próximo, extrair da sua aplicação as regras mais apreciáveis e não deixa de fazer tentativas para conseguir uma ampla caracterização da vida humana a partir deste dado inicial. Nem sempre o conseguira (na verdade nem todos os autores da ficção científica possuem a qualidade literária de Ray Bradbury), mas enuncia problemas novos, que todos pressentimos e por vezes meditamos.

O interesse que se regista pela ficção científica tem por consequência a sua base num mundo contemporâneo que trouxe a ciência para o domínio público. O que fora, por exemplo durante a Idade Média, actividade secreta, amaldiçoada, é hoje mundo conhecido, claro, inteligível. O que foi domínio de bruxas, duendes, fantasmas, forças demoniacas, é hoje razão, conhecimento preciso, aplicação prática. Deste modo a ficção científica furta-se a um mundo infantil para procurar um plano judicativo, onde o encadeamento causa-efeito é considerado no seu justo valor.


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