domingo, maio 18, 2014

«A crise de crescimento da ficção-científica», por Michel Butor, in JLA (1966).

Texto publicado no Jornal de Letras e Artes de 20 Julho 1966, pp 2-3 e 14.

Transcrito aqui para efeitos de memória bibliográfica. Foi feita uma ligeira actualização ortográfica (mas não segundo o AO 1990). Mantiveram-se as gralhas e contradições de grafia presentes no original.


Antologia

A crise de crescimento da ficção-científica
por Michel Butor


I

Se o género da ficção-científica é bastante difícil de delimitar – as querelas dos especialistas provam-no superabundantemente -, ele é, pelo menos, dos mais fáceis de designar. Basta dizer: «Você sabe, essas narrativas em que se fala de foguetões interplanetários», para que o interlocutor menos preparado perceba imediatamente aquilo de que se trata. Isto não implica que em todas as narrativas da ficção-científica intervenha um tal aparelho; pode-se substitui-lo por outros acessórios que representam um papel comparável. Mas esse é o mais usual, o exemplo tipo, como a varinha mágina nos contos de fadas.

Podem-se fazer imediatamente duas notas:

1.º Não existe de momento nenhum foguetão interplanetário (1). Se alguma vez existiu, o leitor comum não sabe. Uma narrativa onde intervém um aparelho deste género é então uma narrativa fantástica.

2.º Mas nós acreditamos com muita firmeza que tais aparelhos vão existir em breve, que é apenas uma questão de alguns anos. Um tal aparelho é possível. Esta noção é fundamental e exige certo esclarecimento.

Pode-se pretender que para os narradores árabes, que acreditavam no poder dos mágicos, os tapetes voadores também eram «possíveis». Mas para a maior parte de nós essa possibilidade dos foguetões é de outra ordem. É garantida pelo que se pode chamar grosseiramente: a ciência moderna, um conjunto de doutrinas cuja validade nenhum ocidental põe seriamente em dúvida.

Se o autor duma narrativa teve o cuidado de introduzir um tal aparelho, é porque ele deseja não abandonar a realidade senão numa certa medida, quer prolongá-la, estendê-la, mas não separar-se dela. Quer dar-nos uma impressão de realismo, quer fazer entrar o imaginário no real, antecipando-se aos resultados adquiridos. Uma tal narrativa situa naturalmente a sua acção no futuro.

Podem-se imaginar, partindo da ciência moderna na sua acepção mais larga, não só outros aparelhos, mas técnicas de todas as espécies, psicológicas, pedagógicas, sociais, etc. Esta garantia científica pode tornar-se cada vez mais diluída, mas é ela que constitui a especificidade da ficção-científica que pode ser definida como: uma literatura que explora o campo do possível, tal como a ciência nos permite entrevê-lo.

É um fantástico enquadrado num realismo.

A obra de Júlio Verne é o melhor exemplo de uma ficção-científica em primeiro grau, que se justifica pelos resultados adquiridos e apenas antecipa sobre as aplicações. Wells inaugura uma ficção-científica em segundo grau, muito mais audaciosa, mas muito menos convincente. Deixa-nos supor por detrás da máquina de Cavor, que vai levar os primeiros homens à lua, uma explicação de tipo científico, de acordo com uma ciência possível que se desenvolveria a partir da ciência do seu tempo.



II

A agência turistica ao serviço da ficção-científica propõe aos seus clientes três tipos principais de espectáculos que se podem agrupar sob as rubricas seguintes: a vida futura, os mundos desconhecidos, os visitantes inesperados.


1.º A VIDA FUTURA

Parte-se do mundo tal como o conhecemos, da sociedade que nos rodeia. Introduzem-se um certo número de mudanças cujas consequências se procuram prever. Pela projecção no futuro, multiplica-se a complexidade do presete, desenvolvem-se certos aspectos ainda larvares. A ficção-científica deste tipo é um notável instrumento de investigação metódica na tradição de Swift. Tem voluntariamente um aspecto satírico. Encontram-se excelentes exemplos nas obras de Huxley (Brave New World), Orwell (1984), Werfel (Stern der Ungeborene), Hesse (Das Glasperlenspie!), Bradbury, etc.


2.º OS MUNDOS DESCONHECIDOS

Basta mencionar o nome de Ray Bradbury, cuja obra mais conhecida se chama, na edição americana, Martian Chronicles, para ver que um elemento muito diferente se introduziu quase necessariamente.

O progresso técnico não tem por único fim transformar a nossa vida quotidiana mas também satisfazer a nossa curiosidade. Os novos instrumentos, as novas ciências devem permitir-nos descobrir domínios da realidade que nos estão vedados actualmente. No interior da representação científica do mundo, há imensos cantões que a imaginação é livre de povoar de paisagens e de seres estranhos a seu bel-prazer, sob a reserva de algumas restrições muito largas. Podemos projectar neles os nossos sonhos.

Este espectáculo da ficção-científica, quando coloca o seu inferno no interior do globo, o seu purgatório nos antípodas e o seu paraíso nos astros não faz mais do que projectar a sua teologia nos espaços livres que a cosmologia medieval reservava.

Assim, Júlio Verne inventariou cuidadosamente as lacunas da geografia do seu tempo, e preencheu-as com os mitos inscritos no prolongamento dos factos conhecidos realizando uma síntese que nos parece ingénua, mas supera pela sua amplitude e a sua harmonia tudo o que os seus sucessores tentaram.

Quando um autor do século XVIII queria dar uma aparência de realidade a uma fábula, tinha um lugar muito determinado para a situar: as ilhas do Pacífico. (Cf. Diderot: Supplément au Voyage de Bougainville). Agora, que a exploração da superfície terrestre é muito avançada, prefere-se colocar as ilhas no céu. Mas se naturalmente nada se conhecia ainda dos arquipélagos que ainda não estavam descobertos, estava-se pelo menos certo que, fora algumas peculiaridades notáveis, não podiam ser muito diferentes dos que já eram conhecidos. Estava-se sempre sobre a mesma Terra, com as mesmas condições geras. [sic]

Pelo contráro [sic], o pouco que se sabe actualmente das ilhas do céu prova-nos que tudo deve ser muito diferente. Sabe-se que a gravidade é mais forte em Vénus, mais fraca em Marte, do que na Terra, etc. Estes reduzidos elementos obrigam o escritor que os respeita a um esforço imenso de imaginação, forçam-no a inventar algo de verdadeiramente novo. Infelizmente, a criação duma outra «natureza», mesmo baseando-se apenas em conhecimentos elementares, é uma tarefa tão árdua que nenhum autor, até ao presente, tentou empreendê-la metodicamente.

Para não se confessar vencido, vai-se superenriquecer. Em vez de descrever o que se poderia passar em Marte e Vénus, vai saltar de golpe para o terceiro planeta do sistema tal, ou então, já que nada o impede de prosseguir em tão bom caminho, para o planeta n da estrela n da galáxia n. O leitor fica em primeiro lugar impressionado por estas cascatas de anos de luz; decididamente, o sistema solar era uma aldeia bem pobre, eis-nos lançads no grande universo. Mas apercebe-se rapidamente de que esses planetas ultra-longínquos se assemelham muito mais à Terra do que aos seus vizinhos. No número imenso de astros que povoam o espaço, é sempre plausível encontrar um em que as condições de vida sejam muito próximas das que conhecemos. Os autores encontraram as ilhas do século XVIII. Empregam um calão vagamente científico e decoram o céu com fantasias encantadoras.

Esta liberdade infinita é uma liberdade falsa. Se nos afastamos para indefinidamente longe no espaço ou no tempo, entramos numa região onde tudo é possível, em que a imaginação não terá mesmo de fazer um esforço de coordenação. O resultado será uma duplicação empobrecida da realidade quotidiana. Fala-se-nos de uma guerra imensa entre civilizações galáctivas, mas vemos logo que a liga dos planetas se assemelha estranhamente à O.N.U. e o império da nebulosa de Andrómeda à União Soviética tal como um leitor de Reader’s Digest a concebe, e assim por diante. O autor não faz mais do que traduzir em linguagem de ficção-científica um artigo de jornal lido ao serão. Se tivesse permanecido no planeta Marte, ter-lhe-ia sido necessario inventar.

Nos seus melhores momentos, a ficção-científica que descreve os mundos desconhecidos torna-se um instrumento de uma extraordinária agilidade, graças ao qual todos os géneros de fábulas políticas e morais, de contos de fadas, de mitos, podem ser transpostos e adaptados aos leitores modernos. A antecipação criou uma linguagem com a ajuda da qual se pode, em princípio, exprimir tudo.


3.º OS VISITANTES INESPERADOS

Em ficção-científica, a descrição dos mundos desconhecidos integra-se forçosamente numa antecipação, por rudimentar que seja; é natural que ela reaja sobre esta. Não foi pela melhoria das relações comerciais que a invenção da bússola transformou o mundo, mas pela descoberta da América. A descrição dos mundos e seres desconhecidos leva à descrição da sua intervenção na história futura da humanidade.

Pode-se imaginar facilmente que os habitantes de outros planetas tenham uma civilização em avanço sobre a nossa, que tenham então um raio de acção superior ao nosso, que nos precedam na descoberta.

O espaço inteiro torna-se ameaçador; seres estranhos podem intervir antes mesmo de os conhecermos. A maioria dos precolumbianos não esperava que uma invasão assassina viesse do oriente.

É em A Guerra dos Mundos de H. G. Wells, que se encontra este tema pela primeira vez, e os seus inúmeros imitadores não lhe acrescentaram grande coisa. É um tema profundamente moderno (não veio à ideia de nenhum homem do século XVI que a Europa pudesse ser descoberta por sua vez) e extremamente poderoso (algumas emissões radiofónicas atestam-no).

Graças a esta noção de intervenção, a ficção-científica pode integrar os aspectos do fantástico que, à primeira vista, parecem os mais opostos: tudo o que se pode enfileirar sob o título: «superstições».

Em A Divina Comédia Beatriz transporta Dante de planeta em planeta, em Inter Extaticum do Padre Kircher, é um anjo; nós não estamos ainda na ficção-científica que implica que a viagem se opera graças a uma técnica desenvolvida pelo homem. Mas esta técnica permitir-nos-á entrar em contacto com seres aos quais se podem supor conhecimentos que não temos, técnicas que não compreendemos. Pode, por certo, dar a fantasia a um deles de vir à terra, agarrar em um de nós, e transportá-lo para algures por meios que não é sequer necessário explicar. A diferença entre um tal ser e o anjo de Kircher torna-se ínfima: apenas a linguagem mudou. Com efeito, é preciso agora para obter uma credulidade suficiente que o ser seja descrito do mesmo modo que um ser que o homem tivesse descoberto noutro planeta. Assim, poder-se-iam integrar no interior da ficção científica todas as narrativas de fantasmas e demónios, todos os velhos mitos que falam de seres superiores que intervêm na vida dos homens. Certas narrativas de H. P. Lovecraft ilustram esta possibilidade.

C. S. Lewis começa a sua curiosa trilogia anti-moderna por um romance que tem todas as características da ficção-científica: Out of the Silent Planet. Dois sábios transportam um jovem filólogo para o planeta Marte, graças a um space ship última palavra. No segundo tomo: Perelandra, o autor tira a máscara: é um anjo quem transporta o folólogo para Vénus; quando aos sábios, são hipóteses de Satan.


III

Vê-se que sob a etiqueta ficção-científica pode passar toda a mercadoria; e que todo o género de mercadoria experimenta a necessidade de passar sob esta etiqueta. Parece então que a ficção-científica representa a forma normal da mitologia do nosso tempo: uma forma que, não só e capaz de revelar temas profundamente novos, mas que é capaz de integrar a totalidade dos temas da literatura antiga.

Mau graudo algumas belas realizações, não pode deixar de se pensar que a ficção-científica tem cumprido mal as suas promessas.

É que, ao alargar-se, a ficção-científica desnatura-se; perde pouco a pouco a especialidade. Comporta um elemento de credulidade muito particular; esse elemento enfraquece cada vez mais quando é usado sem discernimento. A ficção-científica é frágil, e a enorme difusão que conquistou nestes últimos anos não faz senão torná-la ainda mais frágil.

Já vimos que a fuga para os planetas e as épocas ultra-longínquas, que a princípio parece uma conquista, na realidade mascara a incapacidade dos autores para imaginar de um modo coerente conforme às exigências da «ciência» os planetas ou as épocas mais próximos. Da mesma maneira, a adivinhação de uma ciência futura traz, é certo, uma grande liberdade, mas vê-se logo que é sobretudo uma vingança dos autores pela sua incapacidade de dominar o conjunto da ciência contemporânea.

Acabou o tempo em que um Aristóteles podia ser o primeiro investigador do seu tempo em todos os domínios, e aquele em que um Pic pretendia sustentar uma tese De omni re scibili; mas também terminou o tempo em que um Júlio Verne podia manejar facilmente as noções implicadas em todas as aplicações técnicas realizadas na sua época e antecipar outras aplicações, permanecendo perfeitamente claro para os alunos das escolas secundárias que formavam o seu público.

Hoje as noções implicadas nos aparelhos tão correntes como o posto de rádio ou a bomba atómica superam largamente o nível de cultura científica do leitor médio. Ele utiliza sem compreender; admite sem pedir explicações; e o autor beneficia disso, o que o leva com frequência a acumular disparates, pois não conhece suficientemente, em geral, as noções de que é obrigado a servir-se, sob pena de passar por retardatário, o que é uma acusação muito grave quando se pretende desvelar os mistérios dos anos 200 000.

Daí resulta que a ficção-científica, que devia alcançar parte do seu prestígio pela sua precisão, permanece vaga. A história não chega verdadeiramente a tomar forma. E quando os sábios se propõem escrever, provam muitas vezes a sua ignorância das disciplinas que não lhes são familiares e a sua dificuldade em divulgar a sua especialidade.

A ficção-científica distingue-se dos outros géneros do fantastico pelo tipo especial de plausibilidade que introduz. Essa plausibilidade está em proporção directa dos elementos científicos sólidos que o autor introduziu. Se eles faltam, a ficção-científica torna-se uma forma morta.


IV

Compreende-se, agora, que poucos autores se arrisquem a precisar a sua imagem de um mundo transformado. Com efeito, é um empreendimento que supõe, não só uma cultura científica muito acima da média, mas também um conhecimento da realidade presente comparável à suposta por um romance do tipo realista, e enfim um esforço enorme de coordenação. Habitualmente o autor conteenta-se [sic] em evocar um mundo futuro «em geral», que pode situa-se tanto em 1975 como em 19750, caracterizado pela difusão das matérias plásticas, da televisão e do foguetão de motor atómico. É no interior desse cenário que desenvolverá resumidamente uma ideia por vezes muito engenhosa. Noutra novela, tomará esse mesmo fundo para desenvolver outra ideia, sem se dar ao cuidado de as coordenar. Daí resultarão uma infinidade de futuros esboçados, todos independentes uns dos outros e na maior parte contraditórios. Haverá mesmo uma infinidade de planetas Marte, de que cada um diminui a plausiblidade dos outros.

Esta dispersão tem como consequência directa a monotonia, pois os autores, já que renunciam a construir sistematicamente, não podem descrever senão de maneira rudimentar e não podem fugir à banalidade.

Parece que a ficção-científica comeu o seu pão branco. Ela tinha um ponto de partida muito belo. Basta falar de marcianos para apaixonar o leitor. Mas aproxima-se o tempo em que ele se aperceberá de que a maioria desses monstros, apesar das crostas, são muito menos diferentes do americano médio do que um simples mexicano. A ficção-científica calcou a erva sob os seus pés, gastou milhares de ideias. Abriram-se portas muito grandes a fim de partir para a aventura, e apercebemo-nos de que se regressa a casa. Se os autores abastardam os seus textos é porque se dão conta de que um esforço de melhoria os levaria um impasse.

As narrativas de ficção-científica tiram o seu poder de um grande sonho comum que temos, mas, de momento, são incapazes de lhe dar uma forma unificada. É uma mitologia impotente, incapaz de orientar de modo preciso a nossa acção.

(1)    Este artigo é anterior ao envio de foguetões à Lua.

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