quarta-feira, julho 09, 2014

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Sulphira & Lucyphur


António de Macedo (1995). Sulphira & Lucyphur. Lisboa: Caminho.

Não me consegui libertar da sensação de exotismo orientalista ao longo da leitura desta obra de António de Macedo. É um livro que se assume nominalmente como de ficção científica, mas que por dentro desta casca se revela algo mais exótico. As influências do esotérico e do maravilhoso são mais fortes do que a visão científica da FC. E assumidas, parece-me. Não se trata aqui de imaginar explorações espaciais em futuros distantes, mas antes criar uma sensação de forças cósmicas para lá da nossa percepção. Diga-se que é um conceito que tem o seu quê de época, esta FC pouco científica e muito esotérica herdeira da viragem cultural hippie e new age com toques do esoterismo da viragem de século.

O romance desenrola-se em dois grande cenários. Num planetóide aparentemente estéril do cosmos longínquo cinco emissários de Khalôm, essa imagem de cidade de elevação espiritual que Macedo tanto utiliza na sua obra literária e cinematográfica, descobrem-se no ponto fulcral de uma ofensiva de seres transdimensionais malévolos. Ou aparentemente malévolos, porque nestas coisas nunca há absolutos e a invasão parece ser uma tentativa de partilha que corre mal por desvarios da física hiperdimensional. Na Terra acompanhamos as aventuras de um fútil nobre lisboeta e de uma criadita engenhosa, que não são quem aparentam ser. São manifestações corporais de dois dos emissários cujos corpos se encontram no distante planetóide.

Estes cometem o crime supremo dos emissários, o apaixonar-se e quebrar com a sua dualidade a pentacularidade dos núcleos de emissários da distante Khalôm. São, no final do romance, punidos com exílio permanente na Terra, ocupando os corpos humanos que invertem lógicas sociais. Ele, por cá, é nobre e ela humilde, mas na gloriosa civilização de que são originários ela é princesa e ele humilde técnico. É um dos indícios da marcante ironia que Macedo coloca nas suas obras. A Terra, aparentemente um planeta atrasado de somenos importância, é de facto o ponto nevrálgico das guerras cósmicas que opõem as várias Khalôms e os invasores extradimensionais. O progresso científico é a arma da desespiritualização, o elemento que permite ao lado negro afirmar-se no universo. A tentação de descartar esta ideia como uma posição anti-científica do autor é grande, mas creio que errada. Macedo contrapõe com um personagem secundário que encarna tudo o que está de errado na superstição disfarçada como ciência, na figura de um médico que não se apercebe que os constantes ataques de tosse de que sofre talvez advenham do constante fumar e que prefere curar todas as maleitas com sangramentos e mezinhas. Os doentes curam-se, apesar do tratamento. Talvez o ponto onde o autor nos quer deixar a reflectir é na problemática da ética na ciência, dos excessos da hubris, nas visões dos progressos a todo o custo que não olham às consequências.

Após a leitura a sensação que fica é a de grande exotismo. Quer o onirismo do vasto cosmos quer as intrigas da Lisboa do século XIX, aqui manipuladas por forças ocultas que fazem dos homens ambiciosos os seus peões, estão mais dentro de sentimentos de deslumbre com o maravilhoso do que aventura com bases científicas. As fronteiras valem o que valem, são úteis para definir e reflectir, mas não nos deixemos espartilhar por elas. Obras que transgridem os limites de género são interessantes precisamente pela mistura de iconografias e elementos de diferentes tradições,abrindo horizontes ficcionais e, em essência, despertando sonhos. Algo que do que vou conhecendo da obra de António de Macedo, parece ser um dos seus principais pilares de força. Isso e a forte ironia que confere às suas narrativas.
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«Um Português, Autor de Ficção Científica» in JLA (1962)

Artigo em Jornal de Letras e Artes, 13 de Junho de 1962, p. 15. Transcrito para efeitos de memória bibliográfica.

 
Um Português, Autor de Ficção Científica
Que é a ficção científica, a «science-fiction», conforme foi primeiramente designada em 1926 pelo norte-americano Hugo Gernsback, esse género literário que conquistou tão grande popularidade no mundo inteiro?

A expressão, no seu significado literal de «fantasia científica», não parece corresponder ao seu verdadeiro sentido, embora tenha criado raízes no público. Seria talvez mais adequado denominar «antecipação científica» a essa corrente literária, cultivada desde há séculos por escritores e filósofos como Platão, Cyrano de Bergerac, Voltaire, Edgar Poe, Júlio Verne, André Laurie, H. G. Wells e, modernamente, por nomes como Robert Heilein, Isaac Asimov, Van Vogt, Arthur C. Clark [sic], Will Jenkins, Th. Sturgeon, etc.

Na verdade, por muito fantasistas que sejam os seus relatos, têm sempre demonstrado, quando escritos por autores conscienciosos, a preocupação de não se afastarem do conteúdo real da Ciência, ainda mesmo quando parecem transcendê-la nas suas mais ousadas concepções; além de que podem eventualmente encaminhar os cientistas na senda de novas e fecundas descobertas.

Misto de realidade e de imaginação, que fornece um meio ideal de evasão inteligente da vida, este género literário conta grandes cientistas entre os seus mais fiéis leitores.

A sua popularidade deve-se, inegavelmente, ao interesse despertado pelas espantosas realizações da ciência e da técnica modernas, nesta época de «robots» e cérebros electrónicos, de foguetões e satélites artificiais, de energia atómica e de... discos voadores.

Mais do que as histórias policiais, possui um extraordinário poder de sedução, a que não faltam acção, aventura e emoções fortes. Distrai, mas também instrui, revelando ao leitor muitos factos que eram desconhecidos e, simultâneamente, representando o género mais variado no campo do pensamento humano.
Pois esta literatura tão interessante, tão cheia de actualidade num mundo que se prepara ambiciosamente para conquistar o Universo, não tinha até há pouco tempo, que saibamos, um representante nas letras portuguesas.

Deve-se esse mérito a Luís de Mesquita, que há poucos anos se estreou com a publicação de uma novela de antecipação denominada «Mensageiro do Espaço». Inexplicavelmente, essa obra não mereceu a menor referência da crítica. Apraz-nos, portanto, preencher essa lacuna. E fazemo-lo, pois não podemos deixar de louvar a perseverança, agora que, alheio a desânimos que seriam legítimos, vai publicar o seu segundo romance do mesmo género, intitulado «A Ameaça Cósmica».

terça-feira, julho 08, 2014

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«O Homem que Vinha do Passado» in JLA (1962)

Crítica em Jornal de Letras e Artes, 30 de Maio de 1962, p. 3. Transcrito para efeitos de memória bibliográfica.

O Homem que Vinha do Passado, por Theodore Sturgeon
O autor, já experiente na feitura de livros de ficção científica, patenteia mais uma vez a sua fértil imaginação criadora ao descrever-nos as curiosas e empolgantes reacções de Charlie Johns – um homem que vivia no futuro e cujo paraíso se transformou num pesadelo quando notou o paradoxo temporal em que vivia.

Correcta tradução de Mário Henrique Leiria e capa de Lima de Freitas digna de um registo muito especial.

J. V.

segunda-feira, julho 07, 2014

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«Nove Amanhãs» in JLA (1962)

Crítica em Jornal de Letras e Artes, 18 de Abril de 1962, p. 4. Transcrito para efeitos de memória bibliográfica.

Nove Amanhãs, de Isaac Asimov – Tradução de Fernando de Castro Ferro – 305 páginas – Colecção Órbita – Editorial Minotauro
Se a ficção científica é já hoje aceite como um género digno de enfileirar com qualquer outro tipo de literatura de ficção, tal se deve a alguns dos seus melhores cultores, de que vem a propósito recordar Isaac Asimov.

«Nove Amanhãs» é uma série de histórias, visões fantásticas do futuro do homem, em que Asimov revela todos os seus conhecidos dotes de imaginação, os seus conhecimentos científicos e o seu talento de escritor. As histórias, com um ambiente psicológico semelhante, põem o homem perante os problemas suscitados pelas forças materiais que ele próprio libertou, mas que não consegue dominar.

Livro excitante e imaginativo, recomendamo-lo ao público interessado neste género de literatura.

domingo, julho 06, 2014

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«H. G. Wells ressuscitado» in JLA (1961)

Notícia em Jornal de Letras e Artes, 25 de Outubro de 1961, p. 6. Transcrito para efeitos de memória bibliográfica.



 
H. G. Wells ressuscitado

A célebre obra de H. G. Wells, «Outline of History», que foi publicada pela primeira vez em 1919, surgiu agora de novo numa edição completamente revista conjuntamente por Raymond Postgate e pelo filho de Wells, prof. G. P. Wells. Nesta obra fenomenal, lançada pela editorial Cassell, Wells apresenta uma história universal, escrita sob o ponto de vista de um humanismo científico e progressista, partindo da evolução da vida neste planeta, desde a idade dos répteis até à formação da Sociedade das Nações. Raymond Postgate escreveu um quadro suplementar do Mundo, até 1960.

sábado, junho 28, 2014

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Texto de abertura da edição portuguesa de City (A Cidade no Tempo), de Clifford D. Simak [1955]

Texto de abertura do n.º1 da Colecção Escalas do Futuro,  A Cidade no Tempo , Clifford D. Simak, Publicações Europa-América, 1955. Título original: City. Tradução de M. Pina e A. Margarido, capa de A. Areal. Colecção dirigida por Mário Henrique Leiria e C. Eurico da Costa.

Transcrito para efeitos de memória bibliográfica.


da ficção científica em geral, de clifford d. Simak e de “a cidade no tempo” em particular
Se quiséssemos determinar o aparecimento do que hoje designamos por ficção cientifica, teríamos de retroceder na História, indo à procura do que dentro do conceito e definição, relativos à época, poderíamos englobar no termo «ciência». Mas se quisermos limitar-nos a uma definição, quanto possível literária e exacta, dos primeiros indícios da corrente que gerou a literatura de antecipação e as viagens extraterrestres teremos de nos reportar a Luciano de Samos (século II a.C.). Nas suas Histórias Verdadeiras o tema é explorado atráves de uma viagem que o herói empreende à Lua, numa barcarola à vela, meio de locomoção que correspondia inteiramente aos horizontes limitados da época, sob esse aspecto. Noutra obra posterior o herói do escritor de Samos voa para a Lua munido de um par de asas...

Na Idade Média o astrónomo Johannes Kepler descobriu as leis que regem o movimento dos planetas. E com base no seu conhecimento científico (o que o distanciava já de Luciano de Samos) escreveu um livro de ficção, Somnium, só publicado em 1964. Aqui a figura principal é transportada para a Lua por meios sobrenaturais, cuidadosa precaução para quem ainda vive numa época em que a magia vigora, e até porque Kepler, como cientista que era, sabia que os meios de locomoção conhecidos não eram suficientes para levar avante o empreendimento. Todavia, a sua descrição do aspecto local da Lua é a primeira que corresponde à realidade telescópica.

Quatro anos somente após a publicação de Somnium, na Inglaterra, isto é, em 1638, Bishop Godwin escreve Um Homem na Lua, trabalho lírico de antecipação, pois o seu herói voa para a Lua numa carruagem puxada a cisnes... No entanto, em 1640, publica Discurso sobre Um Mundo Novo, que, embora não sendo ficção, é uma discussão séria sobre o nosso satélite, sobre as suas condições físicas e estudo das possibilidades de nele se instalarem colónias humanas.

Depois, durante dois séculos, surgiram outras obras versando o tema das viagens interespaciais. Entre as mais engenhosas conta-se a Viagem à Lua e ao Sol, de Cyrano de Bergerac, aparecida em 1656. Ao grande escritor francês deve-se a original ideia de sugerir, como meio de locomoção no espaço, o foguete de propulsão. Fontanella, em 1686, num livro de astronomia popular, aborda a possibilidade de existência de vida noutros planetas. Voltaire, em 1752, no Micrómegas, cria os primeiros seres interastrais: o gigante Micrómegas, habitante do sistema solar de Sírio, que visita a Terra acompanhado de um saturniano. Todavia, a criação destas personagens obedece somente a um pretexto de sátira de costumes.

O primeiro verdadeiro trabalho de antecipação com base científica aparece pela pena de Júlio Verne, em 1865: Da Terra à Lua. No entanto, em 1827, J. Atterley já abordara o problema da aceleração em naves espaciais, com a criação de um metal que venceria a força da gravitação terrestre. Em 1901, H. G. Wells, o grande precursor da science-fiction, aborda o mesmo tema em Os Primeiros Homens na Lua, revelando a «cavorite», substância que anula a força da gravidade, o que lhe permite transportar os seus aventureiros numa simples esfera oca. Wells desenvolve também o tema dos seres interplanetários na história da invasão da Terra pelos Marcianos.

Em 1926 nasce a verdadeira science-fiction, tal como hoje a definimos, no magazine Amazing Stories, fundado por Hugo Gernsback, a quem se deve o termo que define a nova literatura. Em 1938 John W. Campbell lança o magazine Astounding Stories, aparecendo então a ficção científica social, de que hoje Ray Bradbury é o autor mais representativo. Entretanto, a nova literatura vai conquistando elevado número de adeptos e entusiastas do tema. Nos Estados Unidos fundam-se grupos e clubes que congregam escritores, leitores e cientistas de renome e o exemplo é também seguido pelo Canadá, U.R.S.S., Inglaterra, França e outros países. Actualmente o público leitor da ficção científica, entre o qual se encontra numeroso grupo de intelectuais e artistas, eleva-se a muitos milhões em todo o mundo.

Entretanto, dois grandes escritores, como Aldous Huxley e Alexis Tolstoi, e, mais recentemente, Elsa Triolet, interessam-se também pelo tema de antecipação e H. P. Lovecraft traça um novo caminho na literatura fantástica.

A deflagração da bomba atómica em Iroshima é o início de uma nova era para a humanidade e iria marcar uma nova etapa no desenvolvimento da ficção científica. Após a guerra surgiram nos Estados Unidos Ray Bradbury, o cientista Isaac Asimov, Van Vogt, Robert Heinlein, Clifford D. Simak, Th. Sturgeon, etc., que rapidamente se tornaram os autores favoritos de um público sempre crescente de entusiastas. Em França, Francis Carsac, Roger Sorez e o estranho escritor de tendências surrealistas Ives Touraine – que pela primeira vez coloca, no plano da antecipação social, o problema sexual – caminham na vanguarda de um grupo de novos escritores do género. Na Inglaterra, cientistas como Arthur C. Clark [sic] e Low, entre outros, inscrevem-se também como autores desta nova forma literária.

A science-fiction invadiu já o cinema, a rádio e a televisão, e promete tornar-se um dos mais representativos ramos da literatura da actualidade. Nesta escala permanente para o futuro, que é o próprio destino da humanidade, a ficção cientifica abre o caminho. Nisso reside o segredo do seu inegável êxito.

*

o autor – De Clifford D. Simak há a dizer que é um homem e que está vivo. Nasceu e há-de morrer como tantos milhões de outros homens. Quanto ao local onde existe, é mais uma coordenada geográfica a juntar a tantas que por aí há. Não são dados biográficos o que nele nos interessa; é a espantosa capacidade de sentir os problemas humanos, a riqueza poética e a força de imaginação que neste pequeno homenzinho americano nos espanta e nos conduz para além da fronteira do que fica escrito. Quando, já ultrapassada a possibilidade do espanto, abrimos os olhos ao que nos conta, é com uma espécie de ânsia e amizade que ficamos à espera que ele nos entre pela porta, vindo do outro lado do tempo, acompanhado da notícia de que já não há guerra, já não há ódio, já não há temor. Não impica isto um abandono da força de caminhar e construir; antes pelo contrário. Clifford D. Simak, quando nos conta as suas histórias, diz-nos também que nada está perdido e que a desistência é um engano. Chegar ao fim, apontadas as etapas necessárias e convenientes, é um valor que está sempre presente na obra hoje estranhamente explosiva e quase única de Clifford D. Simak neste outro novo rumo da literatura que é a ficção científica. Quanto ao resto, são possíveis confusões previamente preparadas por pessoas que não querem ou a quem não convém ver.

*

a obra – Não estamos em frente de uma obra de pura ficção científica. Esta obra ultrapassa em muito os puros dados de uma aventura de um grupo de homens em direcção a determinado planeta. Efectivamente o que encontramos é o destino de toda a humanidade. Trata-se de um jogo total, que implica o porem-se em causa todas as virtualidades da raça humana.

Com efeito vemos os homens lutarem pela solução dos seus problemas e encontramos o lendário Bounce Websters, que tenta criar uma civilização dual: homens e cães. Civilização que apenas chega a esboçar-se, pois o homem descobre em Júpiter a solução para os seus problemas. Do que acontece em Júpiter importa pouco falar, pois os homens alcançaram o estádio de super-homens.

Paralelamente o encontram homens quem ficam na Terra, pois se perdeu toda a razão dos crimes e violências de qualquer espécie, a superabundância de produtos que não encontram consumo, o excesso de propriedades que a ninguém interessam, que eliminam a causa das dissensões anteriores. O homem é, tanto em Júpiter como na Terra, um homem integral. Trata-se do homem consciente de todas as suas vivências.

O que acontece com os cães é realmente menor? Ou é realmente muito importante? Supomos que é menor, ainda que o autor nos tente mostrar um dos caminhos viáveis, mas desprezado pelo homem, para a solução dos seus problemas. A civilização geométrica e mecânica dos homens opõe o autor o sentimento psíquico dos cães. A solução intermédia, o exemplo do que vai alcançar-se, são os mutantes.

Mas o mais importante deste livro é a denúncia do caminho que deve seguir-se para eliminar as diferenças que existem entre os homens, a solução económica de todos os problemas. Com efeito, alterada a base económica, vemos que os crimes desaparecem e a doença sofre um largo revés. O crime, que é, como se sabe, uma das coordenadas mais importantes do nosso tempo, desaparece totalmente. Perde-se a tradição da violência. Cessam a miséria e a doença. O homem, tal como existe hoje, é um homem menor, diminuído, que muitas vezes encontramos pelos meandros do não ser, da não existência, a tal forçado pelas condições económicas que encontra. A liberdade que, quer em Júpiter quer em Genebra – a única cidade que continua -, os homens encontram será uma pura utopia? E não será uma rigorosa sátira a fraternidade que os cães criam entre todos os animais e os homens não parecem capazes de levar a cabo entre si?

É fora de dúvidas que este John Webster, perdido em Genebra em investigações sem interesse, assim como Sara, pintora, são símbolos dos intelectuais que se isolam dos problemas que realmente interessam e se fossilizam, procurando caminhos que não levam a parte alguma, salvo a perda dos valores vivos. Caminho que um autómato, Jenkins, nos aparece percorrendo com coerência e dignidade. Símbolo também? Sem dúvida, símbolo de um homem novo, permeável a todas as influências, que vai moldar um mundo novo. Mundo donde sairão os homens.

os directores da colecção

prefácio escrito para a edição portuguesa por um cão amigo dos tradutores

A verdade, amigos, é que é melindroso, na minha posição de cão, falar-vos de um livro que nos descreve antecipadamente o futuro da minha raça. Ainda que vindo ao encontro dos temas que nos têm preocupado e resolvendo, desde já, algumas das nossas mais fundas preocupações, é muito difícil, para mim, falar-vos deste livro.

Com efeito, devemos pensar que estou a escrever para homens, homens que nos tratam como objectos de uso comum, alguns, de utilidade, outros, e de ócio e divertimento, outros ainda. O futuro que nos é traçado neste livro é, como se verá, longo e difícil; a nossa existência hoje é muita dura. De uma dureza cada vez maior se pensarmos que os homens roem hoje os ossos que nos deviam caber. Porém, que podem muitos homens fazer senão roer ossos?

Mas não vos falarei da minha raça. Espero que compreendais a delicada missão que me deram quando me pediram para escrever esta nota prefacial. Falarei, portanto, do homem.

Não do homem de hoje, mas do homem futuro. Não do homem roído por doenças e preocupações, mas do homem futuro. Não do homem que é presa quotidiana do medo e da fome, mas do homem livre. Não do homem coisa, que é tantas vezes menos do que um cão (e espero, amigos, que compreendais que não nos cabe culpa da posição de luxo e privilégio de que muitas vezes aparecemos ornados), mas do homem integral, do homem que será um dia nosso aliado, que criará a civilização dual, onde homens e cães poderão percorrer uma vida comum, até que os destinos se diferenciem.

Venceram-se as doenças e venceram-se as barreiras económicas, venceram-se as lutas entre irmãos (e queremos também, amigos, pedir-vos desculpas dos cães-polícias que encarregam de perseguir homens e dos cães de guerra que também perseguem homens; a verdade, amigos, é que nos não cabe a culpa: não temos de pedir desculpa ou perdão, mas os homens, esses, têm de nos pedir desculpa e perdão), os homens encontram-se numa plataforma comum, onde os problemas se discutem lado a lado. Peço que reparem no facto de que desapareceram referências a raças, credos, educação e cultura. Os homens aparecem-nos iguais. Peço que reparem também que, vencidas as superstições de vários géneros e as dificuldades económicas, a religião desapareceu. A ligação entre os cães e os homens é feita por intermédio de autómatos. Julgo a selecção justa, pois a verdade é que para os homens que já o são (finalmente!) e para os cães que ainda não são os cães a solução é o meio-homem, o homem-ferramenta (e podemos ver no autómato o homem definido em termos de geometria e mecânica).

Não me cabe aqui falar de Júpiter, ainda que um dos membros da minha raça tenha estado envolvido nessa aventura. Deixou de se tratar da raça humana: são rastejadores, uma raça nova, uma mutação.

Dos mutantes também não me cabe falar: superaram a raça humana e etraram em regiões quase desconhecidas e dificilmente frequentáveis. Outros, na altura oportuna, vos falarão de uns e de outros.

A verdade, amigos, é que pouco mais me resta para vos dizer. Lamento só que, embora sabendo o futuro, já o não alcance. Pena por mim e pelos meus irmãos. E mais pena ainda pelos homens.

Oxalá tudo corra como está escrito que acontecerá.



sexta-feira, junho 13, 2014

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Crítica a «Missão em Sidar», de Stefan Wul, in JLA (1963)

Crítica in Jornal de Letras e Artes, 2 de Outubro de 1963, p. 3. Transcrito para efeitos de memória bibliográfica.
 
«Missão em Sidar», de Stefan Wul

«Missão em Sidar» é um curioso livro para os amadores de ficção científica devido à pena e à imaginação de um dos autores do género mais traduzido em Portugal. Vão-se desbobinando, num crescendo surpreendente, as aventuras de Lorrain no planeta Sidar que Wul efabulou com maestria confirmando o grande prémio do romance de ficção científica de que é detentor.

A boa tradução do Eng.º Gomes dos Santos e uma rigorosa capa de Lima de Freitas valorizam mais  este volume da Colecção Argonauta da Livros do Brasil.

J.V.

quarta-feira, junho 11, 2014

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Entrevista a Alice Sampaio, in JLA (1963)

Entrevista publicada no Jornal de Letras e Artes, 17 de Julho de 1963, pp 1-14. Transcrita para efeitos de memória bibliográfica.

Alice Sampaio: Creio no real e busco-lhe o significado
Aventura a um tempo científica e metafísica, a intriga de «O Aquário» afirma o dom de fantasia de Alice Sampaio, que, após ter-se revelado com «A Cidade Sem Espaço», atenta observadora do quotidiano, comete agora os domínios da Humanidade futura. Arrojada aventura, que nos transporta a um mundo de robots e super-homens, cuja faculdade de amar se atrofiou, mas que conservam a nostalgia da comunicação perfeita. Obra diversa do habitual, colocará possivelmente crítica e pública numa atitude de perplexidade. Porque se trata de um romance inteligente e original, sejam quais forem os seus defeitos de composição e estilo, entendemos dever procurar Alice Sampaio, a quem começámos por perguntar:

- Qual o tema central de «O Aquário»»?

- Atendendo a que escritor, obra e leitores foram um todo, creio ser quase inútil interrogar um sem os outros. E eu gostaria de deixar ao cuidado desses leitores, se existirem, o encargo de me darem conta desse tema. Pretendi, na forma mais artística possível, contar uma história que fosse simultaneamente uma conversa inteligente – a autora simples parceira ou comparsa – e onde se pusessem perguntas, mal ou bem, a que outros deveriam responder, mal ou bem – uma larga discussão, «un amusement», se me é permitido. Quer isto dizer que me nego a colaborar na construção dum «tempo presente» válido e concreto? Nada disso! Estou convencida, sim, de que os homens de todos os tempos ajudaram a formar o homem de hoje. Então – pergunto -, por que razão não podemos colaborar na construção do homem futuro, pondo problemas do homem actual? (Tentei pôr problemas do homem actual, embora servindo-me de um mundo a mil léguas de distância, menos que hipotético mas nem por isso destituído de «real»).

E se no dizer de Bertrand Russell, o importante para o homem não é responder a todas as perguntas que porventura se ponham ao seu espirito mas sim formulá-las, se a cada era competem específicas perguntas (Copérnico não saberia interrogar-se sobre a face invisível da Lua), então – repito – que fazer de nós quando possuidores de um «spaac», ou seja do tapete-mágico? Perguntas talvez inúteis, talvez descabidas, mas que insisto em fazer. Qual o tema de «O Aquário»? Aguarda pacientmeente as respostas dos leitores.

- Considera-se uma escritora realista? Em que corrente ou tendência se sente integrada?

- Que significa ser-se classificado ou catalogado como escritor realista? Dar a primazia à solução dos problemas de ordem material, no sentido restrito e simultaneamente largo de que todos tenham pão para a boca? Sem dúvida, é isso o primeiro grande passo do homem. Contudo, afigura-se-me impossível resolvê-lo sem nos decidirmos a fazê-lo e, para que essa decisão seja tomada, há que resolver muitas outras que se nos põem simultaneamente e a diferentes níveis. Eu interrogo: Porque tudo é construir. Sou nesse caso uma escritora realista? Parece-me que sim. Tenho um Credo que enuncio: Creio na Matéria-Toda-Poderosa – no «real» portanto – e busco-lhe o significado, a dimensão, a forma, a tonalidade e a ausência de colorido, o som e o silêncio – quereria saber-me por instantes apreendendo-a totalmente, que a minha inteligência durante um ínfimo segundo compreendesse e me deixasse dizer: vejo, escuto – que a minha sensibilidade e imaginação, rodeando-a por todos os lados, às tantas acabasse mesmo por lhe desvendar um dos milhares de segredos tão ciosamente guardados. Não, um laboratório, com a sua rigorosa aparelhagem, não me seria de grande utilidade – a fantasia nega-se à rigidez dos métodos de uma investigação verdadeiramente científica. E eu desejaria sobretudo que o meu livro fosse Arte e não Pseudo-Ciência). E, porque compreender o «real» é caminhar no sentido da Metamorfose, o simplesmente Humano a transformar-se em Humano e Mental, a Irritabilidade em Inteligência, o Domínio da Natureza (longe de mim a ideia de fazer de Pitonisa, ou de Sábio-das-Sete-Partidas, ponho apenas afirmações como hipóteses, suposições como intuição poética – chamemos-lhe assim) – eu quereria compreender esse «real».

Que podem significar entretanto os termos realistas, neo-realista, surrealista, etc, senão denominações da mesma busca, da mesma vontade deliberada de transcender-se? (Os homens de todos os tempos inventaram deuses não por brinquedo ou desejo de mergulhar no obscurantismo, antes pelo contrário... Temos necessidade dos nossos deuses, ultrapassá-los dialecticamente, reinventar outros, sempre, «ad infinitum»).

Em que escola ou tendência me sinto integrada? Aguardo que alguém de boa-vontade queira catalogar-me, arrumando-me com toda a sem-cerimónia na prateleira que for mais conveniente.

- Acredita num nexo entre o romance e o local ou o tempo em que vivemos?

- O local onde hoje vivemos é a Terra inteira, um pequeno globo que os astronautas vêem atráves de écrans-visores e dizem ser raro e fantástico esferóide girando lento e imperturbável, brilhante e escuro, para lá de querelas e diversões, mares ou continentes. O «local» do romance, o seu «tempo» apoucam-se assim, visto, através da tele-objectiva, os indivíduos dão-se conta de um universo hertziano, onda média e curta até aqui desconhecido... E os diferenciados problemas do nosso «habitat» tornam-se menos diferenciados: em toda a parte os seres se agitam no mesmo febril Movimento: crescer e transformar-se. É certo: há zonas de cultivo especiais e... experimentais, onde a vida se processa num diapasão mais vibrante, outras onde se alongam ainda abutres de miséria e vergonha – que o Céu se compadeça e as criaturas arranjem unhas se defender e livrar do Mal, «amen». São os meus votos mais ardentes.

- Não será a sua resposta ainda o resultado de um meio social...?

- Acha que isto é ainda o resultado do meio social que nos condiciona? Um processo de evasão – quando tudo deveríamos fazer para assentar bem os pés na terra (terra essa que pode ser uma nebulosa qualquer...) – dizermo-nos a cada passo que há foguetões interplanetários prontos a largar para o Cosmos e levar-nos em belíssimo pasesio [sic] Pólo-Norte-Pólo-Sul-da-Galáxia? (Que afinal a Imaginação é o elemnto perturbador da pacata ou preocupada vida burguesa). Possivelmente...

- Projectos?

- Continuar a interrogar, insistir em contar histórias a pessoas mais ou menos desinteressadas, mais – quem sabe? – talvez às tantas acabemos por levar-nos a sério, mutuaente, narrador e ouvintes.

Preparo um romance em grande-estilo, quero dizer, uma longa narrativa, à antiga, realista ou não, continuação da mesma busca – noutro tom (para não maçar demasiado). Antes disso desejaria publicar uma peça de teatro, duas peças de teatro, três peças de teatro, que aguardam numa gaveta, prontas a passar ao prelo, à falta de cena...

Faço à Humanidade esta dádiva de imaginação – que não me foi solicitada, valha a verdade. Se a Humanidade do meu breve tempo, do meu reduzido espaço a recusar – que fazer de mim?

terça-feira, junho 10, 2014

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Sulphira & Lucyphur


António de Macedo (1995). Sulphira & Lucyphur. Lisboa: Caminho.

Não me consegui libertar da sensação de exotismo orientalista ao longo da leitura desta obra de António de Macedo. É um livro que se assume nominalmente como de ficção científica, mas que por dentro desta casca se revela algo mais exótico. As influências do esotérico e do maravilhoso são mais fortes do que a visão científica da FC. E assumidas, parece-me. Não se trata aqui de imaginar explorações espaciais em futuros distantes, mas antes criar uma sensação de forças cósmicas para lá da nossa percepção. Diga-se que é um conceito que tem o seu quê de época, esta FC pouco científica e muito esotérica herdeira da viragem cultural hippie e new age com toques do esoterismo da viragem de século.

O romance desenrola-se em dois grande cenários. Num planetóide aparentemente estéril do cosmos longínquo cinco emissários de Khalôm, essa imagem de cidade de elevação espiritual que Macedo tanto utiliza na sua obra literária e cinematográfica, descobrem-se no ponto fulcral de uma ofensiva de seres transdimensionais malévolos. Ou aparentemente malévolos, porque nestas coisas nunca há absolutos e a invasão parece ser uma tentativa de partilha que corre mal por desvarios da física hiperdimensional. Na Terra acompanhamos as aventuras de um fútil nobre lisboeta e de uma criadita engenhosa, que não são quem aparentam ser. São manifestações corporais de dois dos emissários cujos corpos se encontram no distante planetóide.

Estes cometem o crime supremo dos emissários, o apaixonar-se e quebrar com a sua dualidade a pentacularidade dos núcleos de emissários da distante Khalôm. São, no final do romance, punidos com exílio permanente na Terra, ocupando os corpos humanos que invertem lógicas sociais. Ele, por cá, é nobre e ela humilde, mas na gloriosa civilização de que são originários ela é princesa e ele humilde técnico. É um dos indícios da marcante ironia que Macedo coloca nas suas obras. A Terra, aparentemente um planeta atrasado de somenos importância, é de facto o ponto nevrálgico das guerras cósmicas que opõem as várias Khalôms e os invasores extradimensionais. O progresso científico é a arma da desespiritualização, o elemento que permite ao lado negro afirmar-se no universo. A tentação de descartar esta ideia como uma posição anti-científica do autor é grande, mas creio que errada. Macedo contrapõe com um personagem secundário que encarna tudo o que está de errado na superstição disfarçada como ciência, na figura de um médico que não se apercebe que os constantes ataques de tosse de que sofre talvez advenham do constante fumar e que prefere curar todas as maleitas com sangramentos e mezinhas. Os doentes curam-se, apesar do tratamento. Talvez o ponto onde o autor nos quer deixar a reflectir é na problemática da ética na ciência, dos excessos da hubris, nas visões dos progressos a todo o custo que não olham às consequências.

Após a leitura a sensação que fica é a de grande exotismo. Quer o onirismo do vasto cosmos quer as intrigas da Lisboa do século XIX, aqui manipuladas por forças ocultas que fazem dos homens ambiciosos os seus peões, estão mais dentro de sentimentos de deslumbre com o maravilhoso do que aventura com bases científicas. As fronteiras valem o que valem, são úteis para definir e reflectir, mas não nos deixemos espartilhar por elas. Obras que transgridem os limites de género são interessantes precisamente pela mistura de iconografias e elementos de diferentes tradições,abrindo horizontes ficcionais e, em essência, despertando sonhos. Algo que do que vou conhecendo da obra de António de Macedo, parece ser um dos seus principais pilares de força. Isso e a forte ironia que confere às suas narrativas.

domingo, junho 01, 2014

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«Villiers de L’Isle-Adam – um precursor» in JLA (1965)

Texto publicado no Jornal de Letras e Artes, 3 de Março de 1965, p. 6.
Transcrito para efeitos de memória bibliográfica.

Villiers de L’Isle-Adam – um precursor

Na colecção «Les plus belles page, Frantz-André Burguet apresenta Villiers de l’Isle-Adam. No seu prefácio, tão insólito como o modelo, não define a arte deste autor. Indica como um amador ideal, empenhado em apreender a sua complexidade, deve abordá-lo, pois, diz, nenhuma explicação (biográfica, histórica, psicológica) «pode esgotar a excepcional fantasia de Villiers».

Na sua selecção de textos, considerando que nenhum fragmento de «Eve future» ou de «Axel» podia dar uma ideia exacta dessas obras, que, para mais, «Eve future» constitui, na sua totalidade, «as mais belas páginas» de Villiers, preferiu propor-nos apenas narrativas integrais, bastando-se a si mesmas. Através desses contos, dessas novelas de diversa extensão, toda a variedade do talento de Villiers se impõe. E, também, toda a sua modernidade. O simbólico, o fantástico – quase já ficção científica – aliam-se num sentimento muito vivo da realidade. E, sem dúvida, perceberemos que, longe de ser um decadente, Villiers de l’Isle-Adam foi um precursor.
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«Novo filão para o cinema: a "Ficção Científica"», in JLA (1965)

Notícia in Jornal de Letras e Artes, 26 de Maio de 1965, p. 12.
Transcrita para efeitos de memória bibliográfica.

 
Novo filão para o cinema: a «Ficção Científica»


O retorno ao género «ficção-científica» pode já considerar-se um facto. Depois das primeiras películas com certo empenhamento e indubitável qualidade, realizadas nos Estados Unidos anos 1950-55, este género tinha, por assim dizer, enlanguescido, não conseguindo voltar a encontrar o nível convincente de «Quando os mundos chocam», «A guerra dos mundos» ou «A invasão dos ultracorpos», para citar apenas alguns títulos.

Agora, os recentes empreendimentos espaciais americanos e soviéticos e as conquistas da tecnologia, voltaram a impor com toda a actualidade uma nova orientação para a película de antecipação. É recente a notícia dos grandes preparativos que se efectuam na América para a realização de autênticos colossos que mobilizam as mais arrojadas inovações técnicas.

Mas também na Itália o novo género começou a contar com prosélitos, o que se verifica pelo anúncio de um programa que por certo não é inferior, nem em númeor nem em qualidade, ao americano. Um programa que poderá reservar muitas e gratas surpresas, dadaa alta cotização literária e crítica dos argumentos escolhidos e a grandeza dos meios empregados. Marcello Mastroianni decidiu aceitar o papel de protagonista no filme «A décida vítima», inspirado num best-seller americano.

segunda-feira, maio 26, 2014

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Crítica a «Cidadão do Universo», in JLA (1964).

Texto publicado no Jornal de Letras e Artes, 1 de Abril de 1964, pp. 3 e 14. Secção «Resensões Críticas». Transcrito para efeitos de memória bibliográfica.

Cidadão do universo («Pour Patrie, l’Espace»), de F. Carsac – Tradução de Alfredo Margarido – Capa de Lima de Freitas – 206 págs. – Colecção Argonauta – Edição «Livros do Brasil» - Lisboa
Não é apenas mais um livro de ficção científica, mas um romance romanesco de apaixonante interesse e com diversas projecções, a sociológica ao lado da científica, a estética e a política – um desenfadado, fantasioso, mas inteligente divertissement de F. Carsac sobre um mundo estelar de amanhã (após a grande catástrofe... que esperamos não venha a dar-se) em que se afrontam uma sociedade imperial planetária com o culto da força e da obediência e uma mais evoluída civilização a um tempo socialista e individualista, a dos esteleanos, foragidos da Terra, navegadores incessantes do espaço sideral, que, nas suas cidades estrelas-astronaves, se governam por si próprios, aceitando apenas a tutela de um técnico, cujos poderes são limitados, e as decisões das suas assembleias. O trabalho social de cada um reduz-se a poucas horas, nestas cidades espaciais, e cada um tem assim tempo para desenvolver harmoniosamente os seus dons pessoais numa profissão da sua eleição. É neste contexto imaginário que se entrechoca um náufrago do espaço – oficial do Império Terreste Galáctico recolhido por esse «povo das estrelas» cuja concepção da vida é tão diversa da que lhe haviam inoculado. O jovem tenente Tinkar bate-se em duelo com esses seres superiores, defronta agressores não-humanos e, por virtude do amor, aprende finalmente a viver com verdadeira coragem e segurança e a compreender os outros.

Um curioso livro, não isento, todavia, de certas puerilidades, que Alfredo Margarido traduziu de modo muito agradável.

U. T. R. [Urbano Tavares Rodrigues]

domingo, maio 25, 2014

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«A narrativa de antecipação no mundo de hoje» por Tomás Salvador, in JLA (1965)

Artigo publicado no Jornal de Letras e Artes, ano III, n.º 125, de 19 de Fevereiro de 1965, pp. 1 e 16. Transcrito para efeitos de memória bibliográfica. Preservaram-se as discordâncias gramaticas e as gralhas mais evidentes, sendo apenas actualizada a ortografia (mas não para o AO 1990).


A narrativa de antecipação no mundo de hoje
por Tomás Salvador

A literatura como antecipação
Muita gente julgada sisusa qualifica depreciativamente a chamada literatura de science-fiction, ou ficção científica. Nesta literatura, como em todas, há livros bons, menos bons e maus, sofrendo os autores a mesma classificação. Se ninguém está apto para qualificar numa literatura nacional por haver lido só folhetins ou fascículos de quiosque, sem conhecer o zénite de cada cultura, resulta igualmente temerário qualificar depreciativamente uma literatura sem os conhecimentos adequados. Tão elementar resulta que se afigura de explorar.

Os objectivos mais correntes são: 1.º Resultam intranscendentes; 2.º A sua ciência é falsa e sem fundamento; 3.º Demasiadas guerras planetárias e sobre-humanas; 4.º Não se pode alcançar o que Wells, Verne e Huxley realizaram; 5.º Entretém mas não ensina.


Vamos ao debate
Sou um dos que estão convencidos de que a literatura de science-fiction é uma das mais importantes, moral e intelectualmente falando, do nosso tempo. Declaro-me mal preparado e não sei se saberei defender a acusada, mas tentarei. Não rebato todos os pontos citados, pois que começo a admitir que há uma má literatura do género; má é, simplesmente a de tiros, soco, raios desintegradores e monstros estrelares. A boa é a que se preocupa pelos problemas morais e sociais dum mundo agarrado ao debate.

Vaia! se a palavra escapou antes de tempo! Posto que está dita, sigamo-la. A ninguém se esconde que a sociedade moderna impulsionada pelos avanços tecnológicos e novos costumes delas derivadas, está sujeita a um debate. Dizer simples evolução não é suficiente. Isto indica latitude, adaptação. O debate que se prevê será enorme, consubstancial, inclusivamente assustador. Algo que não se sabe todavia girará em torno de um eixo determinado ou será uma explosão sem «contrôle» possível. Este debate – dito como palavra de fácil compreensão – transtornará o mundo moderno, ou melhor, futuro. Não é que preocupem os inventos, mas as suas consequências. Se o simples anúncio da energia nuclear dominada pelo homem provocou o nada desdenhável movimento existencialista do abandono perante o absurdo, e o medo às bombas «H» está provocando movimentos mundiais de protesto, imaginem o que pode trocar a psicologia das massas perante outras armas ou simplesmente outras reformas sociais? Não só o medo ou a morte podem provocar alterações, senão todo o contrário. Que sucederá no campo do trabalho no dia de amanhã, quando os robots, muito mais perfeitos que o homem e incansáveis, lhe roubam os postos de trabalho? Jornada de três ou quatro horas, quiçá ou menos? Possivelmente. Entretanto, que haverá com o seu ócio uma imensa humanidade desobrigada à luta? A diversão, a morte do tempo se converterá numa tarefa do Estado, quase como uma religião. Calculam as consequências morais de tudo isto.

A melhor literatura de science-fiction não trata de guerras interplanetárias, mas da estrutura moral e mental duma sociedade a que uma tecnologia avançadíssima colocará numa situação muito diferente da actual. Trata-se, simplesmente, duma teoria na sua mais ampla acepção. Se tiverem lido as narrações que o americano Walter M. Miller situa na abadia de San Leibomitz [sic] (século XXVII) compreenderiam a lógica que pode resultar uma nova Idade Média daqui a sete séculos. E lógico resulta também a sociedade monstruosamente socializada de Huxley no «Admirável mundo novo», ou a que desgarradamente descreve Ayn Rand em «Vivir». Para não falar da pura destruição intelectual de Arthur Clarke em «O fim da infância», a infância do intelecto humano, entenda-se. Tudo é possível, todas as derivações podem ocorrer, desde acabar um bairro imenso, sujeitos a racionamento estrito numa humanidade supervoada [sic], ou num mundo feliz, regido pela eutanásia e a eugenesia.

 
Inventário de incógnitas
Examinemos alguns dos pontos que condicionam a novela de ficção científica:

1.º Tecnologia em progressão geométrica; 2.º Moral estabilizada; 3.º Alto nível de vida e prolongamento da mesma; 7.º [sic] Problemas do trabalho; 8.º [sic] O Espaço como incentivo.

Não temos mencionado, propositadamente, alguns problemas políticos que deveriam tomar-se em consideração; os conflitos raciais, a coexistência do comunismo e capitalismo, o exacerbamento dos novos nacionalismos, a imigração rural, etc., que a não duvidar, e a menos de cem anos, têm de produzir conflitos. Temos afastado, também intencionalmente, os simples avanços materiais ou conquistas sociais de tipo regional, problemas que a sociedade pode resolver com os seus meios actuais. Temos desejado, pois, os que não podem considerar-se suspeitos de excessiva imaginação senão os que inexoravelmente devem produzir-se.

Ray Bradbury, em Farenheit 451 [sic], descreve uma humanidade onde possuir livros é um crime, onde caminhar a pé ou passear de noite é suspeito, onde a diversão mais generalizada é uma televisão a duas, três ou quatro paredes, até dar a impressão de estar incluido no mesmo que se está transmitindo. E são rebeldes os que não aceitam este estado de coisas. Teodoro [sic] Sturgeon, em «Mais que humano», apresenta a unidade que os alemães chamam Gestalt, ou seja a simbiose de elementos diferentes: um mongoloide calculador, um telepata, umas teleportadoras, um telequinesista. Em «Ciudad», de Clifford Simak, oferece-se o patético fim da Terra numas generalizações que chegam a uma progressiva falta de interesse pela vida a força dum aborrecimento do que tudo tem conseguido.

Poderíamos citar infinitos títulos. Alguns são impressionantes, pessismistas quanto ao futuro da Humanidade. Segundo esses, estamos trilhando o meso caminho que as civilizações anteriores. Charles Fort, um americano impressionante, escritor de uns livros que não se traduziram para castelhano - «Talentos salvajes», «Tierras nuevas», «La duda», «El libro de los condenados», «Lo!», possuía um arquivo com vinte e cinco mil fichas de casos ocorridos na Terra, mas em épocas passadas e outros em tempos modernos, desde chuva vermelha até cabelo crescendo no crânio de uma múmia, passando por gelo flutuante ou rodas de fogo sobre o mar.

Fort, que se está convertendo num mito entre certos círculos, idealizou certas teorias que deixavam em mantilhas a física quântica. Segundo o mesmo escritor, o tempo circula em duas direcções ou, melhor dizendo, em dois sentidos. Portanto, todo é verdade e todo é verdadeiro, desde o homem e seus circunstantes até às mesmas equações. Em consequência, a vida é contínua e descontínua, o mesmo que a luz, ou que é igual, vivemos não numa existência, que poderíamos chamar intermédia. Por existência intermédia podem dar-se equívocos, feitos do passado ou do futuro no presente, ou o contrário. «Todos os fenómenos do nosso estado intermédio – disse num dos seus epígonos, o biólogo Jacques Menétrier – o nosso quase-estado representam um intento de organização, de alcançar a realidade. Mas toda a tentativa de alcançar a realidade é posta proibitivamente pela continuidade, ou pelas forças exteriores, ou pelos feitos excluídos contínuos dos excluídos». Possivelmente encontrarão isto bastante obscuro, mas obscuro [sic] é também a aparição do homem sobre a Terra e ele está aqui. Nada se opõe a que creiamos em Deus e nos preocupem as nossas origens.

 
Retorno à Idade Média?

Contudo, nos meus anos de criança, os camponeses da minha terra costumavam chamar «pedras de raio» a certas matérias que encontravam ao arar. A ciência explica-nos bem claramente o que é uma descarga eléctrica. Mas os camponeses seguem crendo nas «pedras de raio». Porquê? Igualmente, na minha terra se crê que o cancro comia a carne, e, em consequência, um dos remédios era aplicar carne crua. A ciência explica-nos precisamente o contrário, uma proliferação de células. Mas a ciência não encontrou remédio para as mesmas teorias e os camponeses seguram-se à que adquiriram. Quer isto dizer que será cada vez maior o abismo entre o que a ciência explica e o que nós cremos? Com certeza.

Ou, o que é igual, caminhamos a passos agigantados ao que Pauwels e Bergier chamam o «retorno dos bruxos», ou será a outra Idade Média. Infinita ciência por um lado, massas embrutecidas entretidas em diversões para as manter estáveis. A ciência chegará a ser tão absurda que nos refugiaremos nas ilhas das suas crenças. Alguém inventará um pau voador e voltarão as bruxas, alguém dará a um automóvel a forma de uma carroça, alguém descobrirá a elegância de levar um espadim à cinta, e os vestidos serão túnicas gregas, e não faltarão políticos que descubram a monarquia como elemento permanente da continuidade dinástica. E os novos heróis serão os que a televisão, o cinema ou qualquer outro espectáculo descubra. Algo que agora se antecipa, mas que adquirirá caracteres monstruosos no futuro.

Alguém pensa que nestas condições os escritores de ficção-científica estão elaborando uma literatura de terceira categoria? Preocupar-se do futuro humano é perder o tempo? Instituir as terríveis condições de ser humano, ante o debate, é literatura de evasão? Os escritores de todos os tempos têm admitido o complexo filosófico da Utopia, quer dizer, o processo humano e social da humanidade em determinadas circunstâncias. Dado que o existente é o real, sonhar o perfeito é plausível, se bem que enganoso. Todas as filigranas trazidas pela Utopia, ou as deduções da sua complementar Utronia (ciência do que pode ser se o que se passou não tivesse passado), não muda a estrutura do mundo.

Da mesma forma é possível, quase certo em novecentas e noventa e nove centésimas sobre mil, que a literatura de antecipação científica não mudará o futuro. O homem é assim e gosta de se enganar repetidas vezes. Porém, imaginem o que seria literatura de Quevedo, Chaucer, Goethe, Dante, Molière e tantos outros que descreveram «antecipações». Fora os textos curiosos, eficazes ou não politicamente falando, teríamos um impressionante quadro de valores humanos e morais; poderíamos fazer comparações oportunas, teriam criado escola e quando menos esperássemos teríamos aprendido; que os problemas estéticos, sociais, morais ou filosóficos nascem antes que as circunstâncias.

Seria pueril fazer uma lista dos inventos e teorias que os escritores têm antecipado, desde Cyrano a Wells, passando por Huxley, Lovecraff [sic] ou Werfell, sem esquecer dos modernos. Particularmente, assombraram-se, e, às vezes, assustaram-me. Sofro ao pensar o que será a Humanidade dentro de cem ou duzentos anos. O que será quando os frenólogos despertarem a metade do cérebro que não utilizamos. Creio num mundo de telepatas, capacidade humana já pressentida.

 
A literatura morrera

Creio na morte da mesma literatura neste mundo, pois, que objecto terá a palavra escrita quando até a falada desaparecerá, anulada por uma superlinguagem íntima, superveloz, que necessitará de analogias em vez de palavras construidas laboriosamente letra a letra? Muitas, infinitas coisas, se levará à corrente do futuro, algumas delas muito amadas. Por isso, o mundo do futuro preocupa alguns cérebros. Nem todos acertarão nas suas teorias mas apenas alguns. Até o homem da rua, com que se para a conversar, comprenderá que «não será igual nessa altura». Porquê? Como? Quando?

Sucedeu o mesmo nos tempos passados? Horbiger, autor de «La cosmogonia glacial», assegura que há milhões de anos a terra tinha quatro luas. E que uma a uma foram caindo na Terra, provocando cenas catastróficas. E que a única que ficou cairá também. E que então a Terra, convertida em gelo, cairá no Sol. Ou será que, de certo modo, o sacrifício das luas compensava a falta de gravidade da Terra. E quando não quiser esta reserva, adeus, berço do homem. E apresenta como provas as lendas mitológicas, a lembrança de muitos heróis, ligados às mais antigas literaturas do mundo, e às incríveis estátuas da ilha de Páscoa e [ilegível] infinitos fenómenos não ostante explicados.

Em todo o caso, vivamos ou não a última civilização ecuménica é indiscutível que estamos nas fronteiras do Debate. E que a literatura de antecipação está desempenhando um papel cuja importância deixamos ao critério de cada um.

sábado, maio 24, 2014

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Carta de leitor sobre edição de obra de Ray Bradbury, in JLA (1966)

Carta de um leitor ao Jornal de Letras e Artes, n.º 256, 16 de Novembro de 1966, pp. 2 e 19.

Transcrito para efeitos de memória bibliográfica. Respeitou-se a diferença de grafias do termo «Ficção Cientifica», com e sem hífen, ambas constantes no texto original, e assinalam-se as gralhas mais evidentes.

Cuidado com Bradbury

Sr. Director:

Desculpe V. Ex.ª se venho incomodá-lo com rótulos. Mas é que os escritores têm rótulos. Por exemplo: O Sr. X há-de ser policial mesmo que depois não seja, o Sr. Y nunca será policial mesmo que depois seja. Tudo rotulado para se tornar simples e não causar maçadas nem confusões. E nos rótulos há os maiores e os menores. De acordo com isto um escritor de rótulo maior pode ser encacifado no cacifo dos rótulos menores, e vice-versa, tudo para defesa perfeita dos nomes e tranquilidade dos leitores. V. Ex.ª já estará por certo a ver que rótulos menores são esses: os da Aventura, os do Policial, os da Ficção-Científica, entre outros que ainda menores poderão ser, e que menores se tornaram pela inflacção, pela facilidade com que através deles se trataram temas, esquematizaram situações e personagens, pela tão frequente decisão de opiar aquele viajante de autocarros e comboios, aquele frequentador de praias. Apesar disto estou em dizer que mal vamos com os rótulos. Entretanto repare também V. Ex.ª que existe a tendência oposta, da qual será entre nós exemplo toda a empolgante aventura do fecundo antologiador Ross Pynn. Não duvidemos que o antologiador Ross Pynn possui um cacifo policial dos mais vastos. De acordo com um cirtério [sic] tão amplo como democrático, o antologiador Ross Pynn faz alinhar os Kafka, os Luís Borges, os Baudelaire, com os mais corriqueiros e legítimos representantes do género. Mais alguns anos de afincado labor antologiante e lá poderemos ter tudo: o Zaidig do Voltaire no cacifo policial, A Tempestade do venerando Shakespeare no cacifo da Ficção-Científica. E não serei eu, Senhor Director, quem se encarnice contra a implícita largueza de vistas destas recolhas, contra a vontade legítima de acabar com o estigma da menoridade que pesa sobre certos rótulos. (Pois não dizia eu que mal íamos com os rótuols [sic]?) Se me servir das compilações de Pynn, foi para provar a V. Ex.ª que erro seria o admitirmos como universal aquele critério de menoridade de certos rótulos, e demonstrar que também há gente a trabalhar no pólo oposto.

V. Ex.ª vai agora desculpar-me que lhe pergunte se alguma vez reparou na tão grande amplitude de critérios que revela a Coelcção [sic] Dois Mundos da editora Livros do Brasil. É que tanto ali se trapeça [sic] no romanesco fútil e mal-amanhado de Daphe [sic] du Maurier (vidé Rebeca e O outro Eu), no novelissimo frouxo da pior fase da nobel Pearl Buck (vidé A Flor Oculta, Preconceito Racial, etc.), como, e ainda de respiração cortada pelas mudanças bruscas, nos Joyce, nos Kafka, nos Mann, nos Bellow, nos Lorwy [sic]. Abraçam-se gregos e troianos e por isso mesmo, na Colecção Dois Mundos como em Giraudoux, la Guerre de Troie n’aura pas lieu. Tudo está bem como está e não serei eu a guerrilhar contra a coexistência pacífica dos medíocres e não-medíocres nos reinos da literatura. Louvemos pois a máxima e arejada amplitude da Colecção Dois Mundos, que apenas aqui nos serve para um reparo: imagine V. Ex.ª que o flagrante arejamento da Colecção Dois Mundos, que tão facilmente predispõe a selecção dos mais díspares valores literários, não impede afinal que dentro da mesma editora se pratique a desarejada política do rótulo, e esta com um recente e lamentável caso grave: O Caso Bradbury.

Ray Bradbury, todos sabemos, optou pelo mundo da Ficção-Científica. Facto inegável. A esse mundo tem servido com a sua mão de poeta, com os seus dotes de invulgar escritor. Bradbury é um autor de Ficção-Científica típico e, exceptuando as suas Crónicas Marcianas (O Mundo Marciano na edição portuguesa) que alguns editores estrangeiros incluiram em colecções de grande responsabilidade (veja-se o caso da edição italiana), e cuja importância pode muito justamente fazê-las arrastar-se para fora de uma selecção do tipo da Colecção Argonauta, do cacifo da Ficção Científica, não iremos ao ponto de pretender erra [sic] e destruidora a inclusão dos seus habituais títulos dentro do referido cacifo. No caso de O Mundo Marciano apenas haveria a lamentar que não tivesse conseguido adequadas mãos, refugiado como andou numa colecção que divulga em doses industriais nomes e obras cujos elementos de interesse nem sempre têm lugar junto dessa outra camada de leitores onde tal Bradbury havia de constituir notável revelação. Mas imagine V. Ex.ª que Bradbury certo dia resolveu escrever um romance que nada tem a ver com Ficção-Científica. Essa obra chama-se A Cidade Fantástica ou Vinho de Dentes-de-leão, como no original, em virtude de certo vinho citado em muitos passos do livro e que simboliza o esplendor dos dias encantados do Verão (por acaso referido em grande parte da tradução portuguesa como «vinho de dentes de leão» - sem hífens – o que significaria bem esquisita e diversa coisa). Mas continuando: por ser Bradbury um escritor com rótulo mais que definido, muito dificilmente haveria de furtar-se à política do rótulo. E sucedeu então que, embora revelando certa perplexidade, a editora portuguesa dos Dentes-de-leão programou este Bradbury ainda na Colecção Argonauta, fazendo a sua leitura por breve nota explicativa. E essa nota explica que as fronteiras da Ficção-Científica não se encontram delimitadas com rigorosa precisão; que a Ficção Científica não se caracteriza, se não está em erro, nem pela antecipação nem pelo facto de a acção – quando existente – se desenrolar em planetas diferentes da Terra ou em zonas do universo que se não confinam às nossas dimensões de seres terrestres; que tão pouco se caracteriza pelo tipo de episódios e de heróis que habitualmente e de forma predominante, povoam as criações dos seus cultores; (então o que é habitual e predominante não carateriza [sic]? Não se teria querido dizer, em vez de não se caracteriza, não se caracteriza apenas?) que além desse tipo de obras (...) há obras lidimamente de Ficção Científica que, representando uma incursão no reino do possível, do ainda não-realizado, podem com justos motivos incluir-se neste novo género literário. (O cacifo da Ficção-Científica alarga-se, e parece que muito legitimamente). Depois afirma-se ainda que estão neste caso os livros mais recentes de Ray Bradbury (aqui é de notar que A Cidade Fantástica completa neste 66 vinte anos de existência) e que o livro em questão parece mostrar até que ponto o real quotidiano esconde o maravilhoso e o possível, até que ponto a imaginação e a sensibilidade podem revelar o fantástico existente, sem disso nos apercebermos, na nossa experiência quotidiana. Parece. E até seria bom porque se continha A Cidade Fantástica na fronteira da Ficção-Científica. Pois eu diria, Senhor Director, que A Cidade Fantástica é muito mais ou muito menos do que isso mas exactamente o contrários, e que por sinal se escreve num processo inverso ao de toda a Ficção-Científica. Que A Cidade Fantástica é só o olhar maravilhado e poético de uma infância, capaz de emprestar fantástico ao real, capaz de descobrir maravilhoso aonde existe trivialidade. E assim se cria um novo e vivo mundo onde os adultos morreram, como por lá se diz em qualquer sítio. O próprio Bradbury é quem fornece a chave. Muitas das frases do romance dizem que só nele existe o real transfigurado, nunca o maravilhoso oculto. E até finaliza a sua bela obra de forma que a tal respeito se revela bem significativa (português meu): E se alguma vez ele se esquecesse, lá estava o vinho de dentes-de-leão na cave, com grandes números por cada dia vencido. Muitas vezes haveria de ir lá olhar o Sol de frente, até os olhos não suportarem mais, e depois contemplaria, com eles fechados, as manchas queimadas e as cicatrizes efémeras a dança [sic] nas suas pálpebras quentes, ordenando e voltando a ordenar cada chama, cada reflexo, até o desenho ficar nítido... Pois é, Senhor Director, desta vez Bradbury não foi escritor de Ficção-Científica e A Cidade Fantástica difcilmente [sic] terá que ver com a Colecção Argonauta, onde se encaixou a espernear. Foi tudo do rótulo. E usando uma fórmula paralela à que usou há tempos Rui Mário Gonçalves a propósito de Picabia, direi eu também agora, ainda que por razões diferentes: «Cuidado com Bradbury».

De V. Ex.ª atenciosamente,

Afonso A. Lemos

domingo, maio 18, 2014

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«A crise de crescimento da ficção-científica», por Michel Butor, in JLA (1966).

Texto publicado no Jornal de Letras e Artes de 20 Julho 1966, pp 2-3 e 14.

Transcrito aqui para efeitos de memória bibliográfica. Foi feita uma ligeira actualização ortográfica (mas não segundo o AO 1990). Mantiveram-se as gralhas e contradições de grafia presentes no original.


Antologia

A crise de crescimento da ficção-científica
por Michel Butor


I

Se o género da ficção-científica é bastante difícil de delimitar – as querelas dos especialistas provam-no superabundantemente -, ele é, pelo menos, dos mais fáceis de designar. Basta dizer: «Você sabe, essas narrativas em que se fala de foguetões interplanetários», para que o interlocutor menos preparado perceba imediatamente aquilo de que se trata. Isto não implica que em todas as narrativas da ficção-científica intervenha um tal aparelho; pode-se substitui-lo por outros acessórios que representam um papel comparável. Mas esse é o mais usual, o exemplo tipo, como a varinha mágina nos contos de fadas.

Podem-se fazer imediatamente duas notas:

1.º Não existe de momento nenhum foguetão interplanetário (1). Se alguma vez existiu, o leitor comum não sabe. Uma narrativa onde intervém um aparelho deste género é então uma narrativa fantástica.

2.º Mas nós acreditamos com muita firmeza que tais aparelhos vão existir em breve, que é apenas uma questão de alguns anos. Um tal aparelho é possível. Esta noção é fundamental e exige certo esclarecimento.

Pode-se pretender que para os narradores árabes, que acreditavam no poder dos mágicos, os tapetes voadores também eram «possíveis». Mas para a maior parte de nós essa possibilidade dos foguetões é de outra ordem. É garantida pelo que se pode chamar grosseiramente: a ciência moderna, um conjunto de doutrinas cuja validade nenhum ocidental põe seriamente em dúvida.

Se o autor duma narrativa teve o cuidado de introduzir um tal aparelho, é porque ele deseja não abandonar a realidade senão numa certa medida, quer prolongá-la, estendê-la, mas não separar-se dela. Quer dar-nos uma impressão de realismo, quer fazer entrar o imaginário no real, antecipando-se aos resultados adquiridos. Uma tal narrativa situa naturalmente a sua acção no futuro.

Podem-se imaginar, partindo da ciência moderna na sua acepção mais larga, não só outros aparelhos, mas técnicas de todas as espécies, psicológicas, pedagógicas, sociais, etc. Esta garantia científica pode tornar-se cada vez mais diluída, mas é ela que constitui a especificidade da ficção-científica que pode ser definida como: uma literatura que explora o campo do possível, tal como a ciência nos permite entrevê-lo.

É um fantástico enquadrado num realismo.

A obra de Júlio Verne é o melhor exemplo de uma ficção-científica em primeiro grau, que se justifica pelos resultados adquiridos e apenas antecipa sobre as aplicações. Wells inaugura uma ficção-científica em segundo grau, muito mais audaciosa, mas muito menos convincente. Deixa-nos supor por detrás da máquina de Cavor, que vai levar os primeiros homens à lua, uma explicação de tipo científico, de acordo com uma ciência possível que se desenvolveria a partir da ciência do seu tempo.



II

A agência turistica ao serviço da ficção-científica propõe aos seus clientes três tipos principais de espectáculos que se podem agrupar sob as rubricas seguintes: a vida futura, os mundos desconhecidos, os visitantes inesperados.


1.º A VIDA FUTURA

Parte-se do mundo tal como o conhecemos, da sociedade que nos rodeia. Introduzem-se um certo número de mudanças cujas consequências se procuram prever. Pela projecção no futuro, multiplica-se a complexidade do presete, desenvolvem-se certos aspectos ainda larvares. A ficção-científica deste tipo é um notável instrumento de investigação metódica na tradição de Swift. Tem voluntariamente um aspecto satírico. Encontram-se excelentes exemplos nas obras de Huxley (Brave New World), Orwell (1984), Werfel (Stern der Ungeborene), Hesse (Das Glasperlenspie!), Bradbury, etc.


2.º OS MUNDOS DESCONHECIDOS

Basta mencionar o nome de Ray Bradbury, cuja obra mais conhecida se chama, na edição americana, Martian Chronicles, para ver que um elemento muito diferente se introduziu quase necessariamente.

O progresso técnico não tem por único fim transformar a nossa vida quotidiana mas também satisfazer a nossa curiosidade. Os novos instrumentos, as novas ciências devem permitir-nos descobrir domínios da realidade que nos estão vedados actualmente. No interior da representação científica do mundo, há imensos cantões que a imaginação é livre de povoar de paisagens e de seres estranhos a seu bel-prazer, sob a reserva de algumas restrições muito largas. Podemos projectar neles os nossos sonhos.

Este espectáculo da ficção-científica, quando coloca o seu inferno no interior do globo, o seu purgatório nos antípodas e o seu paraíso nos astros não faz mais do que projectar a sua teologia nos espaços livres que a cosmologia medieval reservava.

Assim, Júlio Verne inventariou cuidadosamente as lacunas da geografia do seu tempo, e preencheu-as com os mitos inscritos no prolongamento dos factos conhecidos realizando uma síntese que nos parece ingénua, mas supera pela sua amplitude e a sua harmonia tudo o que os seus sucessores tentaram.

Quando um autor do século XVIII queria dar uma aparência de realidade a uma fábula, tinha um lugar muito determinado para a situar: as ilhas do Pacífico. (Cf. Diderot: Supplément au Voyage de Bougainville). Agora, que a exploração da superfície terrestre é muito avançada, prefere-se colocar as ilhas no céu. Mas se naturalmente nada se conhecia ainda dos arquipélagos que ainda não estavam descobertos, estava-se pelo menos certo que, fora algumas peculiaridades notáveis, não podiam ser muito diferentes dos que já eram conhecidos. Estava-se sempre sobre a mesma Terra, com as mesmas condições geras. [sic]

Pelo contráro [sic], o pouco que se sabe actualmente das ilhas do céu prova-nos que tudo deve ser muito diferente. Sabe-se que a gravidade é mais forte em Vénus, mais fraca em Marte, do que na Terra, etc. Estes reduzidos elementos obrigam o escritor que os respeita a um esforço imenso de imaginação, forçam-no a inventar algo de verdadeiramente novo. Infelizmente, a criação duma outra «natureza», mesmo baseando-se apenas em conhecimentos elementares, é uma tarefa tão árdua que nenhum autor, até ao presente, tentou empreendê-la metodicamente.

Para não se confessar vencido, vai-se superenriquecer. Em vez de descrever o que se poderia passar em Marte e Vénus, vai saltar de golpe para o terceiro planeta do sistema tal, ou então, já que nada o impede de prosseguir em tão bom caminho, para o planeta n da estrela n da galáxia n. O leitor fica em primeiro lugar impressionado por estas cascatas de anos de luz; decididamente, o sistema solar era uma aldeia bem pobre, eis-nos lançads no grande universo. Mas apercebe-se rapidamente de que esses planetas ultra-longínquos se assemelham muito mais à Terra do que aos seus vizinhos. No número imenso de astros que povoam o espaço, é sempre plausível encontrar um em que as condições de vida sejam muito próximas das que conhecemos. Os autores encontraram as ilhas do século XVIII. Empregam um calão vagamente científico e decoram o céu com fantasias encantadoras.

Esta liberdade infinita é uma liberdade falsa. Se nos afastamos para indefinidamente longe no espaço ou no tempo, entramos numa região onde tudo é possível, em que a imaginação não terá mesmo de fazer um esforço de coordenação. O resultado será uma duplicação empobrecida da realidade quotidiana. Fala-se-nos de uma guerra imensa entre civilizações galáctivas, mas vemos logo que a liga dos planetas se assemelha estranhamente à O.N.U. e o império da nebulosa de Andrómeda à União Soviética tal como um leitor de Reader’s Digest a concebe, e assim por diante. O autor não faz mais do que traduzir em linguagem de ficção-científica um artigo de jornal lido ao serão. Se tivesse permanecido no planeta Marte, ter-lhe-ia sido necessario inventar.

Nos seus melhores momentos, a ficção-científica que descreve os mundos desconhecidos torna-se um instrumento de uma extraordinária agilidade, graças ao qual todos os géneros de fábulas políticas e morais, de contos de fadas, de mitos, podem ser transpostos e adaptados aos leitores modernos. A antecipação criou uma linguagem com a ajuda da qual se pode, em princípio, exprimir tudo.


3.º OS VISITANTES INESPERADOS

Em ficção-científica, a descrição dos mundos desconhecidos integra-se forçosamente numa antecipação, por rudimentar que seja; é natural que ela reaja sobre esta. Não foi pela melhoria das relações comerciais que a invenção da bússola transformou o mundo, mas pela descoberta da América. A descrição dos mundos e seres desconhecidos leva à descrição da sua intervenção na história futura da humanidade.

Pode-se imaginar facilmente que os habitantes de outros planetas tenham uma civilização em avanço sobre a nossa, que tenham então um raio de acção superior ao nosso, que nos precedam na descoberta.

O espaço inteiro torna-se ameaçador; seres estranhos podem intervir antes mesmo de os conhecermos. A maioria dos precolumbianos não esperava que uma invasão assassina viesse do oriente.

É em A Guerra dos Mundos de H. G. Wells, que se encontra este tema pela primeira vez, e os seus inúmeros imitadores não lhe acrescentaram grande coisa. É um tema profundamente moderno (não veio à ideia de nenhum homem do século XVI que a Europa pudesse ser descoberta por sua vez) e extremamente poderoso (algumas emissões radiofónicas atestam-no).

Graças a esta noção de intervenção, a ficção-científica pode integrar os aspectos do fantástico que, à primeira vista, parecem os mais opostos: tudo o que se pode enfileirar sob o título: «superstições».

Em A Divina Comédia Beatriz transporta Dante de planeta em planeta, em Inter Extaticum do Padre Kircher, é um anjo; nós não estamos ainda na ficção-científica que implica que a viagem se opera graças a uma técnica desenvolvida pelo homem. Mas esta técnica permitir-nos-á entrar em contacto com seres aos quais se podem supor conhecimentos que não temos, técnicas que não compreendemos. Pode, por certo, dar a fantasia a um deles de vir à terra, agarrar em um de nós, e transportá-lo para algures por meios que não é sequer necessário explicar. A diferença entre um tal ser e o anjo de Kircher torna-se ínfima: apenas a linguagem mudou. Com efeito, é preciso agora para obter uma credulidade suficiente que o ser seja descrito do mesmo modo que um ser que o homem tivesse descoberto noutro planeta. Assim, poder-se-iam integrar no interior da ficção científica todas as narrativas de fantasmas e demónios, todos os velhos mitos que falam de seres superiores que intervêm na vida dos homens. Certas narrativas de H. P. Lovecraft ilustram esta possibilidade.

C. S. Lewis começa a sua curiosa trilogia anti-moderna por um romance que tem todas as características da ficção-científica: Out of the Silent Planet. Dois sábios transportam um jovem filólogo para o planeta Marte, graças a um space ship última palavra. No segundo tomo: Perelandra, o autor tira a máscara: é um anjo quem transporta o folólogo para Vénus; quando aos sábios, são hipóteses de Satan.


III

Vê-se que sob a etiqueta ficção-científica pode passar toda a mercadoria; e que todo o género de mercadoria experimenta a necessidade de passar sob esta etiqueta. Parece então que a ficção-científica representa a forma normal da mitologia do nosso tempo: uma forma que, não só e capaz de revelar temas profundamente novos, mas que é capaz de integrar a totalidade dos temas da literatura antiga.

Mau graudo algumas belas realizações, não pode deixar de se pensar que a ficção-científica tem cumprido mal as suas promessas.

É que, ao alargar-se, a ficção-científica desnatura-se; perde pouco a pouco a especialidade. Comporta um elemento de credulidade muito particular; esse elemento enfraquece cada vez mais quando é usado sem discernimento. A ficção-científica é frágil, e a enorme difusão que conquistou nestes últimos anos não faz senão torná-la ainda mais frágil.

Já vimos que a fuga para os planetas e as épocas ultra-longínquas, que a princípio parece uma conquista, na realidade mascara a incapacidade dos autores para imaginar de um modo coerente conforme às exigências da «ciência» os planetas ou as épocas mais próximos. Da mesma maneira, a adivinhação de uma ciência futura traz, é certo, uma grande liberdade, mas vê-se logo que é sobretudo uma vingança dos autores pela sua incapacidade de dominar o conjunto da ciência contemporânea.

Acabou o tempo em que um Aristóteles podia ser o primeiro investigador do seu tempo em todos os domínios, e aquele em que um Pic pretendia sustentar uma tese De omni re scibili; mas também terminou o tempo em que um Júlio Verne podia manejar facilmente as noções implicadas em todas as aplicações técnicas realizadas na sua época e antecipar outras aplicações, permanecendo perfeitamente claro para os alunos das escolas secundárias que formavam o seu público.

Hoje as noções implicadas nos aparelhos tão correntes como o posto de rádio ou a bomba atómica superam largamente o nível de cultura científica do leitor médio. Ele utiliza sem compreender; admite sem pedir explicações; e o autor beneficia disso, o que o leva com frequência a acumular disparates, pois não conhece suficientemente, em geral, as noções de que é obrigado a servir-se, sob pena de passar por retardatário, o que é uma acusação muito grave quando se pretende desvelar os mistérios dos anos 200 000.

Daí resulta que a ficção-científica, que devia alcançar parte do seu prestígio pela sua precisão, permanece vaga. A história não chega verdadeiramente a tomar forma. E quando os sábios se propõem escrever, provam muitas vezes a sua ignorância das disciplinas que não lhes são familiares e a sua dificuldade em divulgar a sua especialidade.

A ficção-científica distingue-se dos outros géneros do fantastico pelo tipo especial de plausibilidade que introduz. Essa plausibilidade está em proporção directa dos elementos científicos sólidos que o autor introduziu. Se eles faltam, a ficção-científica torna-se uma forma morta.


IV

Compreende-se, agora, que poucos autores se arrisquem a precisar a sua imagem de um mundo transformado. Com efeito, é um empreendimento que supõe, não só uma cultura científica muito acima da média, mas também um conhecimento da realidade presente comparável à suposta por um romance do tipo realista, e enfim um esforço enorme de coordenação. Habitualmente o autor conteenta-se [sic] em evocar um mundo futuro «em geral», que pode situa-se tanto em 1975 como em 19750, caracterizado pela difusão das matérias plásticas, da televisão e do foguetão de motor atómico. É no interior desse cenário que desenvolverá resumidamente uma ideia por vezes muito engenhosa. Noutra novela, tomará esse mesmo fundo para desenvolver outra ideia, sem se dar ao cuidado de as coordenar. Daí resultarão uma infinidade de futuros esboçados, todos independentes uns dos outros e na maior parte contraditórios. Haverá mesmo uma infinidade de planetas Marte, de que cada um diminui a plausiblidade dos outros.

Esta dispersão tem como consequência directa a monotonia, pois os autores, já que renunciam a construir sistematicamente, não podem descrever senão de maneira rudimentar e não podem fugir à banalidade.

Parece que a ficção-científica comeu o seu pão branco. Ela tinha um ponto de partida muito belo. Basta falar de marcianos para apaixonar o leitor. Mas aproxima-se o tempo em que ele se aperceberá de que a maioria desses monstros, apesar das crostas, são muito menos diferentes do americano médio do que um simples mexicano. A ficção-científica calcou a erva sob os seus pés, gastou milhares de ideias. Abriram-se portas muito grandes a fim de partir para a aventura, e apercebemo-nos de que se regressa a casa. Se os autores abastardam os seus textos é porque se dão conta de que um esforço de melhoria os levaria um impasse.

As narrativas de ficção-científica tiram o seu poder de um grande sonho comum que temos, mas, de momento, são incapazes de lhe dar uma forma unificada. É uma mitologia impotente, incapaz de orientar de modo preciso a nossa acção.

(1)    Este artigo é anterior ao envio de foguetões à Lua.

sábado, maio 17, 2014

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«Observações a respeito da ficção-cientifica», por Lúcio Câmara, in JLA (1966)

Texto publicado no Jornal de Letras e Artes, Ano V, n.º 231, de 2 de Março de 1966, nas pp. 5-6.

Transcreve-se para efeitos de memória bibliográfica.

Fez-se a (reduzida) actualização da ortografia (mas não para o AO 1990). Manteve-se o duplo uso da designação de «ficção científica», com e sem hífen.


Observações a respeito da ficção-cientifica

por Lúcio Câmara

A suspeita com que se tem encarado tanto o romance policial como a ficção-científica (admitindo dentro desta designação o romance de antecipação), coloca-nos perante uma situação singular, que consiste no desprezo a que está votada uma produção literária de grande volume e de grande influência. Poder-se-à dizer, e não sem razão, que o problema da quantidade não encontra correspondência na qualidade. Com efeito dificilmente se poderá apontar um romance policial que seja, ao mesmo tempo, um grande romance (a não ser quando é transcendido pela obra romanesca de qualidade, como pode suceder em «L’Inquisitoire» de Robert Pinget).

Ora se o romance policial é essencialmente o romance da razão, um romance de formação caracterizadamente positivista, qual a posição que vem ocupar, no quadro das literatura populares, o romance de ficção científica? É que se, na verdade, o romance policial procura submeter o comportamento humano a exames, a mensurações, a regras de construção que se racionalizam, a ficção científica procura antes uma expansão dos sentimentos num espaço novo, buscando por conseguinte uma penetração em meios ainda inexistentes, mas encarados como de provável existência.

Assim sendo, enquanto o romance policial parte de hipóteses plausíveis para uma prova organizada racionalmente, na medida em que pondera os dados do problema (o que, neste sentido, pode afoitamente dizer-se que o romance policial acredita, como Leibnitz, na existência de constantes sociais que fornecem à sociedade uma organização científica), a ficção científica processa-se em sentido contrário: parte de um dado racional para as hipóteses plausíveis que nos fornecem um universo completamente novo.

Pode constatar-se assim que tanto o romance policial como a ficção científica possuem um dado comum: a sua construção literária está sempre estreitamente ligada à vida, de modo que só os comportamentos vividos, experimentados, fornecem a trama espessa na qual se enredam todos os movimentos, todas as pessoas. No que eles se afastam do romance tradicional é no facto de a experiência dos ramancistas (sic) tradicionais se estribar acima de tudo numa educação estética que os corta, em parte não dispicienda, dos factores mais relevantes da vida moderna.

Considere-se o menosprezo a que estão votados, por quase todos os romancistas do nosso tempo, os problemas cientificos, e até os do progresso técnico. O romance continua apegado a dogmas e a valores que eram válidos para Balzac no tempo em que um tanoeiro podia fazer fortuna administrando com prudência (com avareza) os proventos da sua pequena actividade artesanal, enquanto hoje será muito difícil ao artesão conseguir chegar aos mesmos resultados pelos mesmos processos, na medida em que interveio uma organização de produção, que deriva directamente da aplicação prática de conhecimentos técnico-científicos.

Ora praticamente desde 1800 (data em que começa a desenhar-se, com o seu perfil actual, a chamada revolução industrial) que o homem vê constantemente alterados os dados essenciais da sua vida por via de processos técnicos completamente novos e que, por sua vez, se baseiam numa organização científica, de investigação, que não conhece fronteiras e que tem tendência a alargar-se sempre mais. Ora sucede que sendo o factor cientifico um dos mais influentes na caracterização da nossa vida moderna, os romancistas tradicionais se furtam a considerá-lo, na medida em que a sua escrita se baseia antes de mais em dados de sensibilidade e de ideias.

A contribuição mais importante, portanto, da ficção científica, assenta no alargamento dos quadros literários graças à introdução de elementos novos que têm a sua raíz no domínio da tecnologia. A sua imaginação baseia-se sobretudo nas conquistas e nas hipóteses sugeridas pela ciência moderna e não será inútil, por isso, frisar que alguns dos seus melhores cultores são professores universitários. É o caso de Isaac Asimov (de resto um dos autores mais traduzidos em português), que é professor assistente de bioquímica na Faculdade de Medicina de Boston). Assim os elementos novos introduzidos no sangue rico e fremente da literatura, derivam de um contacto íntimo com o próprio domínio cientifico.

Isto não evita, é evidente, que se possam fazer acusações à ficção científica, na medida em que ela nos não deu ainda um grande romance, nem sequer aquele tipo de romance derivado, como sucede no policial com Robert Pinget. A psicologia é muitas vezes primária, para não dizer simplesmente ingénua, o estilo não tem qualidade literária e a complexidade das formas de existência reduz-se a uma simplicidade que em nada acompanha as formas complicadas da nossa existência quotidiana.

Todavia estes defeitos são facilmente compensados pelo conhecimento que os romancistas de ficção científica revelam do seu mundo próprio, pela maneira apaixonante como articulam os dados da tecnologia, procurando desvendar as influências que ela terá no futuro, tanto no nosso mundo terrestre como nos outros mundos de que o homem se for aproximando, e que acaso venha a ocupar. É neste campo específico que devemos considerar a ficção científica para lhe não exigir aquilo que ela ainda não pode dar, pois se deve considerar que se trata de um género literário novo. Decerto possui ela os seus antecessores, como é o caso de Júlio Verne, de Poe, de Wells, de Aldous Huxley. Mas na verdade só depois de Hugo Gernsback ter publicado em 1926 a primeira revista consagrada à ficção científica é que se viu aparecer uma produção avultada de romances que apenas se podem classificar dentro desta rubrica e de autores que não escrevem senão ficção científica.

Por outro lado constatamos que surgiu rapidamente um público e podemos fazer corresponder facilmente os dois fenómenos, na medida em que a tecnologia moderna provou mudanças profundas no substracto da vida social tanto no plano estético, como no plano ético. Baste pensar-se que a política de pleno emprego, que hoje os governos de quase todo o mundo põem na primeira linha das suas preocupações, deriva da pressão exercida pelo operariado a partir do craque de Nova Iorque (1929), mas também, e talvez sobretudo, das imensas possibilidades de emprego da mão-de-obra qualificada que foram abertas pela aplicação dos conhecimentos cientificos à produção de artigos de consumo corrente.

Assim os progressos espectaculares que se verificam no domínio da física, da química, da electrónica, provocam o aparecimento de novos produtos, a organização de novas organizações de produção, criam novos laços entre o homem e a técnica; do mesmo passo a estética organiza-se num sentido diferente daquele que era o tradicional, pois que os tecidos tornados possíveis pelas fibras sintéticas (por exemplo), possuem gamas e qualidades muito diversas dos tecidos tradicionais, etc. O homem está assim enredado numa teia de conquistas que pouco a pouco o modelam de forma diversa da tradicional.

A ficção científica não se dará ainda conta de todos os matizes, muitas destas vezes subtilíssimos, destas alterações surgidas na estrutura psicológica, mas é capaz de compreender e descrever o impacto destas mudanças no sentido mais grosseiro, deixando-nos compreender os elementos que intervêm directamente nas alterações. E, sobretudo, sabem dirigir-se ao futuro e ao espaço para se interrogaram quanto ao que será a evolução do homem, dado o contínuo progrsso tecnológico que distingue a nossa vida da vida dos nossos antepassados (dos nossos antepassados próximos, note-se bem; bastará comparar a vida dos nossos dias com a da metade deste século XX, bastando para isso assistir à passagem de alguns documentários cinematográficos dos anos 20).

Quando nos debruçamos sobre alguns dos problemas que preocupam os romancistas da ficção científica encontramo-nos perante inquietações que são as nossas de todos os dias; consequências provocadas pela cibernética, por exemplo, que virão alterar, no tempo e no espaço, as nossas concepções morais e políticas (logo económicas, visto que alterarão todo o circuito clássico da produção); governo mundial, opondo-se a tentativas de aniquilação tornadas possíveis pela fragilidade da inteligência de alguns governantes que podem controlar meios de acção demasiado poderosos; conquista da lua e de outros planetas, provocando uma rearticulação nova do homem com o espaço sideral (e rearticulação tão cheia de consequências como a que deriva das conquistas de Galileu, de Newton, etc.)

É assim que ganha corpo a ficção científica: o avião supersónico é uma realização cujas consequências ainda não podemos medir inteiramente, mas o romancista procura já articulá-lo com um futuro próximo, extrair da sua aplicação as regras mais apreciáveis e não deixa de fazer tentativas para conseguir uma ampla caracterização da vida humana a partir deste dado inicial. Nem sempre o conseguira (na verdade nem todos os autores da ficção científica possuem a qualidade literária de Ray Bradbury), mas enuncia problemas novos, que todos pressentimos e por vezes meditamos.

O interesse que se regista pela ficção científica tem por consequência a sua base num mundo contemporâneo que trouxe a ciência para o domínio público. O que fora, por exemplo durante a Idade Média, actividade secreta, amaldiçoada, é hoje mundo conhecido, claro, inteligível. O que foi domínio de bruxas, duendes, fantasmas, forças demoniacas, é hoje razão, conhecimento preciso, aplicação prática. Deste modo a ficção científica furta-se a um mundo infantil para procurar um plano judicativo, onde o encadeamento causa-efeito é considerado no seu justo valor.


quarta-feira, maio 14, 2014

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Nota de Abertura à antologia «De Júlio Verne aos Astronautas», org. Lima de Freitas, 1965

http://coleccaoargonauta.blogspot.pt/2011/09/n-100-os-melhores-contos-de-ficcao.html


O n.º 100 da colecção Argonauta, publicado em 1965, consiste num volume duplo comemorativo (conforme indicado na capa e ficha técnica) designado por Os Melhores Contos de FC – De Júlio Verne aos Astronautas. Uma «antologia» que apresenta o «panorama das diversas tendências da ficção científica numa selecção dos escritores mundialmente representativos» (o sub-título consta apenas da ficha técnica). A selecção e tradução é de Lima de Freitas, que também assina a ilustração da capa.

O texto da contracapa elabora: «Comemorando o n.º 100 da Colecção Argonauta, uma iniciativa editorial sem precedentes. Pela primeira vez em Portugal, num volume duplo e pelo preço de um volume simples, um panorama completo da evolução da Ficção Científica desde Júlio Verne aos Astronautas. Entre centenas de autores, entre milhares de obras, foram seleccionados os contos dos escritores mundialmente mais representativos, formando uma antologia das diversas tendências do género literário mais significativo da nossa época.»

Os contos são, pela ordem com que surgem no livro: «O Eterno Adão» de Júlio Verne, «A Estrela» de H. G. Wells, «Um Outro Mundo» de J. H. Rosny Aîné, «O Templo» de H. P. Lovecraft, «R.U.R. Comédia utópica em três anos e um prólogo» de Karel Capek, «A Virgem dos Rochedos» de Poul Anderson, «Flores para Algernon» de Daniel Keyes, «Do Tempo e da Terceira Avenida» de Alfred Bester, «As Ruínas Circulares» de Jorge Luís Borges, «A Estrela» de Arthur C. Clarke, «Cor Serpentis» de Ivan Efrémov, «O Dragão» de Ray Bradbury, «A Arma» de Frederic Brown, «Instinto» de Lester del Rey, antecidos pela nota de abertura do organizador, que a seguir se apresenta na íntegra para fins de memória bibliográfica.

Nota de Abertura
Esta antologia de «ficção científica» foi feita para dar ao leitor o prazer delicioso de saborear umas quantas histórias engenhosas, originais e cheias de arrojada fantasia. O prazer da boa leitura será o seu maior mérito. O que não impede que certas linhas de pensamento sejam ilustradas ao longo do presente volume e proponham, ao amador de interrogações, vários tópicos para uma meditação proveitosa.

O Eterno Adão, trabalho póstumo do venerável Júlio Verne, abre a discussão da sobrevivência das civilizações, à mercê das forças da Natureza; H. G. Wells vai mais longe, em A Estrela, ao sugerir que não apenas a civilização pode desaparecer num cataclismo, mas o próprio planeta. O conto de Arthur Clarke, que também se chama A Estrela, por curiosa coincidência, fecha o ciclo das ameaças cósmicas com o aniquilamento de um sistema solar: está posta a questão da sobrevivência. Às forças naturais, de cuja grandeza inimaginável vamos tendo uma consciência cada vez maior, juntam-se as forças que o Homem pode desencadear: ameaça de que toda a gente tem hoje uma noção inquietante e que Frederic Brown considera, no seu breve conto A Arma, sob o ponto de vista da ética do cientista.

Quando o clássico chego Karel Capek escreveu a sua célebre peça «R.U.R.» (levada à cena, pela primeira vez, no teatro da Comédie des Champs-Elysées em 1924 e já representada em Portugal por um grupo de teatro dos estudantes da Universidade de Coimbra) ainda se ignorava o perigo atómico. Mas Capek – que nesta peça criou a palavra robot  - tinha consciência dos perigos que advêm para a Humanidade da utilização amoral de certas possibilidades técnicas oferecidas pela Ciência. Que o Homem sobreviva no robot é um arrojo inesperado (sobretudo em 1920), fértil em implicações de toda a ordem. Lester del Rey, com o seu Instinto, acrescenta uma espécie de post-facio a Capek, cheio de inteligente ironia.

Mas não se trata, apenas, de saber como sobreviver, trata-se, também, de saber conviver. O célebre Efrémov – que é, também, um grande cientista (ou talvez fosse melhor dizer: que é, também, um célebre escritor) – aborda, de maneira emocionante, o contacto com outras inteligências e, mais do que isso, a colaboração das inteligências através do espaço e do tempo. Depois do pungente Flores para Algernon, solidão de uma fugaz inteligência, a proposta optimista de Efrémov é o sonho de uma vitória definitiva da sobrevivência através da convivência.

Os cavaleiros do passado, que atacam um futuro que não compreendem, estão condenados à derrota, como o ilustra O Dragão, do grande Bradbury;  somos responsáveis pelo futuro, perante o futuro (Alfred Bester di-lo de um modo original e inesperado). Assim, pela utopia se tece a crítica do presente, pela fronteira estreme da fantasia se faz a prospeção dos grandes sonhos do Homem, pelo maravilhoso se procede à psicanálise do real quotidiano. Que é o real? Que mundos insuspeitos oculta a nossa miopia sensata? J. H. Rosny-Aîné, que foi da Academia Congourt [sic], melhor do que um longo ensaio filosófico, sugere-nos que espécie de mundos outros podem coexistir ao nosso, no seu conto Um outro Mundo. Lovecraft, mestre do fantástico, desce aos abismos submarinos do inconsciente. E o argentino Luís Borges, que foi proposto para o Prémio Nobel, pergunta se não seremos o sonho de outros. Talvez a razão seja o sonho da matéria; o que parece inegável é que o Homem cresce sonhando-se.

Que o leitor, ao longo desta antologia, possa sentir o prazer de ler e o prazer de sonhar, são os nossos votos.

terça-feira, maio 13, 2014

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Prefácio e posfácio a «O Que É a "Ficção Científica"?», org. Victor Palla, 1959




A antologia O Que é a “Ficção Científica”?, organizada por Victor Palla e publicada em 1959 sob a chancela da editora Atlântida (Coimbra), contém os seguintes contos: «A Longa Velada de Armas» de Robert Heinlein, «Quem Parte Leva Saudades» de Jacques Sternberg, «Cidadão no Espaço» de Robert Sheckley, «Interlúdio nas Trevas» de Mack Reynolds e Frederic Brown, «Cair da Noite» de Isaac Asimov, «Senão» de Henry Kuttner, «Lição de História» de Arthur C. Clarke, «A Sombra do Passado» de Ivan Efremov, «A Descoberta de Morniel Mathaway» de Willam Tenn, «Noite» de Chad Oliver, sendo antecedidos por um prefário do organizador e seguidos também por um «postfácio» [sic] da sua autoria.

Transcrevemos na íntegra os textos de Victor Palla para efeitos de memória bibliográfica:

Prefácio


«Mas o sistema solar!» protestei.
«Que diabo me interessa isso?» interrompeu ele, impaciente. «Diz você que andamos à roda do Sol. Se andássemos à roda da Lua, isso não me faria a mínima diferença, nem a mim nem ao meu trabalho.»

Exteriormente, o fenómeno – que alastra pelos escaparates das revistas e livros de bolso – lembra dum modo flagrante o advento e a difusão, ainda relativamente recentes, dum outro fenómeno literário. Centenas de títulos são publicados anualmente; milhões de leitores ávidos devoram indistintamente tudo quanto aparece; outros escolhem, comentam e fundam clubes e tertúlias; o cinema aproveita a moda e produz filmes comerciais estupidamente aterrorizantes e aterrorizantemente estúpidos; aparecem revists populares da especialidade, e esotéricas little reviews; determinado tipo de intelectuais «não lê tal coisa»; políticos, homens de ciência, primeiras-damas confessam, um tudo-nada apologeticamente, que não têm outra leitura favorita, «para distrair o espírito».

Eis, não há dúvida, uma moldura singularmente parecida à do retrato que há um bom par de dezenas de anos se traçava do «livro policial».

Mas a impaciente resposta de Holmes ao bom do Dr. Watson define a diferença fundamental. Ao romance de polícias e ladrões tanto se lhe dá como se lhe deu que a Terra ande à volta do Sol, que se lancem satélites artificiais e bombas atómicas. A «ficção científica» faz de tudo isso (e de muito mais) o seu pão de cada dia. No mundo de regras fixas do romance policial, tudo o que esteja para fora do palco arrisca-se a perturbar grandemente um equilíbrio estático do jogo convencional, tão estático que tem vindo a condená-lo aos poucos à decadência e à morte – destino idêntico ao dos romances franceses de capa-e-espada ou dos Gothic novels ingleses. Em determinadas épocas da história literária aparecem estes subgéneros da ficção romanesca, muito caracterizados; por vezes simples «modas», eles são no entanto instrutivos – porque o êxito dum livro em grande escala é, evidentemente, fenómeno social e não literário. Ora tudo o que afecta milhões de pessoas merece ser conhecido, em vez de recusado sumariamente. Assim aparece este livro.

Ele não é, no entanto, um tratado sobre o assunto, nem uma História da Ficção Científica Desde as Suas Origens Até aos Nossos Dias. Apresenta, mais modestamente, uma dezena de contos, que se escolheram variados, e cuja leitura (e não os comentários do antologista) se espera que dê resposta à pergunta do título. Julga-se que será bem mais esclarecedor, para quem nunca leu f. c., este mergulho de cabeça nos labirintos do género, do que um longo e abstracto artigo teórico, ou, por outro lado, a leitura dum romance (que tem alta probabilidade de ser muito mau). Aqui encontrará o leitor problemas de exploração astral; especulações sobre o viajar no tempo; o desenvolvimento de hipóteses físicas; crítica social, sátira política; e humor à custa dos próprios poncifs da f. c.. Faltam-nos, é certo, robots, mutantes, telepatas; mas para que tudo figurasse seria necessário um bem maior volume. Também não aparecem alguns contos que o organizador gostaria de incluir, mas se encontram já traduzidos e acessíveis: recorda-se particularmente esse extraordinário «A Terra dos Cegos», de Wells (1), e muitas das histórias curtas do grande escritor que é Bradbury (2).

Houve, além disso, a prudência de evitar contos demasiadamente «especializados». Explico melhor: qualquer assunto tem a sua linguagem: um conto sobre um desafio de base-ball pode resultar (e resulta, num caso de que me estou a lembrar) ininteligível ao leitor europeu. A f. c., pela necessidade de empregar os nomes dos objectos e fenómenos não usuais, utiliza uma terminologia própria, cuja estranheza o aficionado já não nota, mas que poderá desorientar o iniciando. O que é um «escafandro espacial»? um «campo de forças»? E que línguas se falarão no futuro? é inevitável que surjam termos novos; que algumas palavras de hoje evoluam, se contraiam. E os hábitos quotidianos das personagens, não deverão ser também diferentes? «Ler» um livro poderá passar a ser encostar aos olhos um visor de microfilmes. O leitor calejado de f. c. dá tudo isto como assente e nem pestaneja quando em vez de um Presidente aparece um Presidor, ou quando uma personagem que estava a ler «pousa o aparelho de leitura». (Estes exemplos não são ao acaso: aparecem no livro.) Mais: esse leitor habitual de f. c. tem já os seus conhecimentozinhos, superficiais mas suficientes, da astrofísica, de astronavegação; e é com um pequeno sorriso de superioridade que assiste, desde o Sputnik à vaga de artigos nos jornais diários vulgarizando assuntos que ele conhece como os seus dedos há muitos, muitos anos. Pois não foi já em 1920 que ele leu Aelita, de Alexis Tolstoi, que narra a chegada a Marte da primeira expedição terráquea? Há dezenas de anos que a sua moeda corrente são os satélites artificiais, as condições de vida nos outros planetas, o aproveitamento pacífico (ou não) da energia nuclear, as grandes evoluções sociais. Não é em vão que, com toda a seriedade, os franceses propõem para substituir o termo ficção científica um outro, antecipação; e em abono da verdade reconheça-se que esta nova Cassandra tem, por conhecimento de causa, premonição, esperançoso wishfull Thinking, ou simples coincidência, muito frequentemente justificado o nome. Ora tudo isto (para voltar ao tema) implica um glossário específico. Os contos deste volume não escapam por completo a essa pressuposição de conhecimentos prévios do leitor. Mas todos os meios de expressão os pressupõem. Passemos portanto à leitura e deixemos para o fim quaisquer comentários adicionais.

(1)    In «H. G. Wells», antologia do conto moderno, Atlântida.
(2)    In Colecção «Argonauta», Livros do Brasil, Lda.


Postfácio

Eis portanto o que é «ficção científica». Se necessária uma definição, podemos arriscar esta: «narrativa baseada deliberadamente na especulação romanesca sobre as consequências principais ou acessórias duma ou várias hipóteses científicas, prováveis ou não.» Talvez ela seja insuficiente a quem não conheça o definido, como quase todas as definições. Ajusta-se, é certo, à bravura de Heinlein, ao negro pessimismo francês de Sternberg, à fácil sátira americana de Sheckley, à crítica implícita em Reynolds & Brown, à poética especulação de Asimov, à ironia de Kuttner, ao sólido humor britânico de Clarke, à curiosidade científica do soviético Efremov, à anedota de Tenn e ao sentido humano de Chad Oliver. Mas ao recapitular estes contos, o antologista deve confessar leamente que receia eles não dêem da f. c. uma ideia muito correcta. As suas preferências pessoais levaram-no a traduzir exemplos menos maus do que a produção média deste género, pintando assim um retrato lisonjeiro e favorecido. É verdade que um género literário tem o direito de ser julgado pelas suas melhores obras. Mas também é verdade que muitas das consideradas «melhores obras» da f. c. são – também elas como as piores – pobres de estilo e composição, repetitivas, e grande parte das vezes duma profundidade psicológica nula – por pertinentes que sejam os seus temas (profecias de destruição, terror da bomba atómica), e justos alguns dos seus postulados (necessidade de colaboração entre todos os homens, anti-racismo). Refiro-me, evidentemente, aos Van Vogt, aos Leinster, àqueles tomados como «profissionais» da f. c.; não às obras ocasionais doutros autores, como 1984 ou Brave New World. (E, no entanto, estes dois exemplos lembram-nos que belo veículo de exame e crítica não poderia ser o género, fossem os seus profissionais melhores escritores! Recordo um único grande romance: o Farenheit 451 [sic] de Bradbury.)

Mas é talvez demasiado cedo para tentar surpreender uma evolução em pleno curso. Como diz Brunetière, os géneros literários nascem, crescem, estiolam-se e morrem; às vezes transformam-se noutros superiores e mais diferenciados, como as espécies na teoria darwiniana da evolução. Não nos precipitemos, pois, num julgamento que só ao futuro compete. Bem possível é que desta bizarra mistura de convencionalismo esquemático e sensação à outrance, de interesse científico e pseudo-ciência, de pessimismo e esperança, surjam, em linha directa ou colateral, grandes e perduráveis obras. Entretanto, das que se vão publicando, melhores ou piores, não vem mal ao mundo – nem a quem tenha a suficiente curiosidade para lê-las.