terça-feira, outubro 01, 2013

Uma tentativa parcialmente bem sucedida para criar uma FC genuinamente portuguesa

Quatro Andamentos é dos tais títulos que nada dizem do conteúdo dos livros, além de tratar-se de uma coletânea de quatro histórias (neste caso, um conto, duas noveletas e uma novela) para as quais o autor não foi capaz de encontrar um elemento unificador suficientemente relevante para merecer um título genérico mais evocativo, nem achou que uma das histórias merecia o suficiente ser destacada das demais para atribuir o seu título ao conjunto.

Mas até há um fio condutor para estas quatro histórias. Há a voz do autor, claro, mas mais qualquer coisa. Uma tentativa, talvez deliberada, talvez fruto de algum acaso, para fazer uma ficção científica realmente portuguesa, com tudo o que isso tem de bom e também de mau. Uma das poucas, diga-se, visto que a ficção científica portuguesa se compraz em geral em transpor para a nossa língua e raramente para a nossa realidade temas e trejeitos típicos da FC anglo-saxónica (e tome-se aqui o termo "ficção científica" no seu sentido mais restritivo, visto que no fantástico e na fantasia as coisas são um pouco diferentes).

Basta isso para dar ao livro de Luís Richheimer de Sequeira um lugar muito próprio na FC nacional.

Mas no fim de todas as histórias, o que conta são os resultados. E há que admitir que aqui os resultados não são propriamente brilhantes.

O livro abre com a história mais curta, com o estranho título de «III». Trata-se de uma peça de FC clássica, ambientada num laboratório de investigação, parte civil, parte militar, onde se procura descobrir uma forma de tornar viável uma consciência artificial cibernética. Mas a realidade é que nas 26 páginas que o conto ocupa não se passa praticamente nada: como em muitas histórias semelhantes que nos vêm chegando pelo menos desde a golden age americana, aqui vamos descobrindo o que se passa, as motivações, as personagens, através de uma longa conversa que tem lugar entre os cientistas que desenvolvem o trabalho e um misterioso grupo que chega ao laboratório para proceder a uma inspeção. Não vemos acontecer nada: lemos apenas descrições. Só isso e apenas isso.

Na segunda história, Segunda Via, voltamos ao ambiente laboratorial, mas agora estamos num laboratório português de pesquisa em engenharia genética, que é contratado para um projeto militar da União Europeia que pretende investigar a possibilidade de reprogramar o cérebro humano. Nesta noveleta, no entanto, e ao contrário do que aconteceu no primeiro conto, o leitor segue, de facto, o desenrolar das coisas, deste o início até ao desenlace final em que nada é como se poderia supor à partida, muito embora continue a haver muita conversa, muita explicação técnica e muito pouca ação.

Depois vem a novela Ironias do Destino. Trata-se de uma história de primeiro contacto, que tem lugar entre uma nave portuguesa (chamada "D. Duarte II", o que faz supor que neste universo ficcional Portugal se teria tornado monárquico... e talvez com o atual pretendente no trono, por distópico que isso nos pareça) e uma misteriosa e extremamente avançada nave alienígena, em pleno hiperespaço. Embora lenta e semeada de apartes filosóficos e teológicos (o protagonista é o capelão da nave, um tal padre Dinis, que se vê vacilante na fé perante o que se vai desenrolando e a afirmação, por parte de uma das tripulantes, de que os alienígenas são anjos), trata-se de uma história bem construída e com um número de surpresas suficientemente elevado para prender a atenção do leitor.

A noveleta que encerra o volume, Terra Lusa, é talvez a melhor das quatro histórias. Irónica e politicamente incorreta, conta a história de um planeta situado perto da fronteira entre a área da galáxia colonizada pela Humanidade e uma área colonizada por uma espécie alienígena, os "bicharocos", com quem se prevê que a todo o momento rebente uma guerra. O planeta, originalmente chamado Omicron Seis, é atribuído para colonização à África Central mas com uma nação supervisora, que neste caso, e porque o planeta não interessa a mais ninguém, é Portugal. A primeira leva de colonos é assim composta por trinta mil africanos, dez mil portugueses e ainda outros dez mil... timorenses. E claro que as coisas começam por correr pessimamente, com declarações de independência pelos não-portugueses e um poder fraco e ineficiente mesmo nas zonas controladas pelo governador português da colónia, mas depois o espírito comercial que a lenda nacionalista atribui aos portugueses vem ao de cima e tudo entra nos eixos quase miraculosamente. Além do humor presente nesta noveleta, ela é interessante também por ser talvez o primeiro texto na FC portuguesa a reaproveitar algo do passado colonial do país para o projectar no futuro ou, até, para construir uma ficção científica em torno dele. Politicamente, os resultados são no mínimo dúbios, mas a tentativa é, em si mesma, interessante.

Em geral, o livro tem vários pecados. É muito lento, de tal modo que por vezes se torna aborrecido, todas as histórias são bastante clássicas quer na estrutura quer até, por vezes, nos temas, indo buscar referências a formas bastante antigas de olhar para a FC e de a produzir, e a qualidade do português tem algumas falhas. Mas estas acabam por ser naturais num primeiro livro, e os elementos de novidade que contém acabam por compensar parcialmente esses pecados. Pesando-se todos os prós e contras, chega-se à conclusão de que se trata de um livro que, embora nunca chegue a chegar sequer perto do estatuto de clássico, e embora nem seja propriamente bom, merece uma leitura por quem se interessa pela FC portuguesa.

Republicado, com alterações, de E-nigma (2005).

2 comentários:

  1. Só hoje é que li esta crítica «repescada» de 2005 e queria agradecer pessoalmente a sua republicação!

    Parece-me que foi uma avaliação extremamente justa e honesta, especialmente porque também admito que dos quatro contos, o que gosto mais (e que me deu mais gozo escrever) foi o último; embora o terceiro tivesse algumas hipóteses de melhoria. O segundo conto serviu-me de «inspiração» (em termos de ambiente) para outros, e, lendo-os em conjunto, faz-me sempre lembrar as intermináveis histórias sobre robots do Isaac Asimov — variações sobre um tema. Mas foi uma altura em que gostava de escrever coisas assim!

    O primeiro conto foi na altura... uma experiência. É verdade que tem zero acção e muito «ambiente». Na altura estava um pouco farto do meu estilo habitual em descrever ambientes (muito na linha simplicista do referido Asimov...) e tentei fazer algo de diferente dessa vez. Pelos vistos não resultou! Mas foi uma tentativa. E houve uma tentativa também deliberada de deixar os contos melhores para o fim. Talvez se a ordem fosse diferente, a sensação de os ler de seguida fosse igualmente diferente. Agora nunca se saberá!

    Salvo erro, estes contos foram escritos no período 1996-1999, pouco mais ou menos; o facto da Caminho achá-los dignos de publicação só pode ser explicado por, na altura, não haver muitas «receitas» automáticas para o sucesso. Hoje em dia, qualquer coisa com vampiros vende. Ou espíritos, ou anjos, ou almas, ou um certo modo automático de escrita de fantástico, em que o cenário e o ambiente pode mudar, mas é a acção e a tensão entre as personagens, que tanto podiam estar num ambiente FC&F como numa telenovela ou sitcom, que levam à venda de livros. Há já bastantes autores nacionais que escrevem dessa forma e que são um sucesso moderado, em Portugal; pelo menos as editoras não se queixam de os ter publicado! Mas nos anos 90 não era assim...

    A «colagem» a temas familiares da FC anglo-saxónica é deliberada. Não pertenço à escola que julga que FC&F tenha de ser obrigatoriamente sempre sobre ideias novas; é interessante quando o é, mas não é só isso. Há 120 anos que se escrevem histórias sobre máquinas do tempo e não é por isso que não se continuam a escrever; há sempre formas diferentes de contar a mesma história.

    No meu caso, a aproximação a temática «clássica», que o leitor de FC irá imediatamente reconhecer, é deliberada. Procuro «enganar» o leitor, pensando que vai ler uma história tipicamente anglo-saxónica, num cenário familiar, a qual já leu trezentas vezes de outros tantos autores. Depois puxo-lhe o tapete por baixo das pernas e revelo que, afinal de contas, não se trata de FC anglo-saxónica: há algo de diferente!

    No entanto, nem sempre fui consistente...

    Quanto ao título da obra, foi «imposição» da editora (que pelos vistos na altura gostavam de Vivaldi!). Já não me recordo qual tinha sido o título proposto, mas penso que a ideia da editora foi mostrar que é livro com quatro histórias distintas, não relacionadas entre si, com um fio condutor subtil e quase imperceptível.

    Seja como for, fico muito grato pela crítica!

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    1. Todas as minhas opiniões são honestas, e procuro que todas sejam também justas. Não creio que valha a pena agradecer-me por isso: é assim que acho que as coisas devem ser. Sempre.

      Interessante, a história do título. Sem sabermos qual teria sido a sugestão do autor, nunca saberemos se este é melhor ou não. Mas que não me parece grande coisa, confesso, não parece. Eu nesta época ainda não sabia muito bem até que ponto podem chegar as interferências editoriais nos títulos; hoje já sei (mas não achei que valesse a pena alterar essa parte deste texto; talvez tivesse valido)

      Quanto à ordem dos contos, eu até a acho quase a melhor possível. Terminar livros de contos com a melhor história é alguma garantia de que o leitor termina a leitura com a melhor impressão possível do que acabou de ler. Pelo menos aquele leitor que gosta de ler as histórias sequencialmente; também há os que gostam de saltitar.

      Onde me parece que se podia melhorar seria em não o ter iniciado com a pior. Assim corre-se o risco do leitor julgar que são todas assim e desistir.

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