domingo, setembro 08, 2013

O epifenómeno Artiauri

Um belo dia de 1997, Ana Godinho apareceu nas letras portuguesas com um romance chamado Artiauri. Não se sabe se estaria nevoeiro nesse dia, se haveria uma névoa a cobrir os lugares por onde a autora passou, mas o que é certo é que ela tão depressa apareceu como se desvaneceu de regresso ao sítio de onde veio, nunca mais tendo aparecido o seu nome nos círculos da ficção científica e do fantástico. A dar conta da sua passagem pelas literaturas da imaginação ficou apenas um romance com um título esquisito. E, em geral, pouco mais: um par de traduções, uma coautoria numa publicação de cariz académico e outra num livro infantil.

Artiauri passa-se num planeta distante, habitado por duas espécies de seres inteligentes: uma, humanoide, é composta pelos descendentes de uma nave que chegara muitas gerações antes, proveniente de um mundo destruído numa catástrofe natural, uma autêntica arca de Noé espacial que serviu (e continua a servir) como repositório do conhecimento da espécie e como fonte de organismos biocompatíveis com a espécie que a construiu, os artiauri. Mas no tempo que passou desde a sua chegada ao planeta, os artiauri regrediram até um estado de civilização dominado por tabus e superstições, para o que muito terá contribuído, decerto, o facto de serem dotados de uma série de capacidades extra-sensoriais: telepatia, telecinese, precognição, enfim, o arsenal completo.

A outra espécie é aracnoide, nativa do planeta e de civilização recente, subjugada por um dimorfismo sexual acentuado (e "di-intelectualismo sexual" mais acentuado ainda — só os machos são inteligentes, o que não deixa de ser curioso se tivermos em conta que a autora é mulher) e ciclos reprodutórios incontroláveis. As fêmeas, apesar de estúpidas, são fortíssimas telepatas e um perigo para os machos que tenham o azar de cair sob o seu domínio (à boa maneira das nossas aranhas). Chamam-se vulturs e, além de se dividirem em machos e fêmeas, também se dividem em raças, uma das quais se encontra em plena expansão.

É esta expansão de uma das raças de vulturs que vai desencadear os acontecimentos descritos no romance, ou seja, a luta dos artiauri pela sobrevivência.

A premissa é interessante, mas o diabo está nos pormenores. E não é sempre assim?

Ana Godinho escolheu não escrever ficção científica propriamente dita mas sim aquilo a que nos círculos anglófonos se chama sicence fantasy, uma espécie de híbrido que mistura elementos de FC e de fantasia, muito presente nas obras de Marion Zimmer Bradley, Anne McCaffrey, Andre Norton, Joan D. Vinge, etc. E fê-lo, aliás, de uma forma bastante típica, ao situar a sua história num planeta distante onde espécies alienígenas (mas muito semelhantes a nós em quase tudo) são dotadas de capacidades mágicas e místicas. Note-se que esta escolha é perfeitamente legítima, mas tem um problema: desagrada aos mais puristas leitores de FC (e também de fantasia), que encaram esta hibridização mais como uma bastardização dos géneros do que como algo que possa trazer alguma inovação.

Apesar disso, se o livro tivesse sido bem concebido poderia ter sido bem acolhido. Infelizmente, Ana Godinho cometeu alguns erros graves que prejudicaram em muito este seu primeiro (único?) romance.

De longe o pior desses erros foi o modo como tentou dar um fundo alienígena à história não através da descrição de ambientes e vivências, mas sim pela invenção e utilização intensiva de palavras que tornam a prosa totalmente impenetrável caso não se recorra a um glossário.

É evidente que o neologismo é uma das características principais da FC e literaturas relacionadas, precisamente porque ao criar conceitos estranhos à experiência humana não existem palavras ou expressões que os designem. Assim, a FC tem de inventá-las e, quando a sociedade ou a ciência evoluem em sentidos que a ficção científica já explorou, não é raro que esses bizarros neologismos acabem por se integrar quase impercetivelmente no discurso quotidiano.

Mas isso é uma coisa, e outra bem diferente é esconder a falta de imaginação ou de técnica de criação de ambientes por trás de neologismos totalmente desnecessários. Para que fim se substitui "unidade familiar" por "toro"? Ou "engano" por "cacha"? Não há qualquer justificação, e muito menos quando estas palavras formam uma parte tão importante do texto.

Esta floresta impenetrável de neologismos prejudica seriamente a fluidez da leitura e, em consequência, o destrute da história. Também torna mais patentes os outros defeitos de que o romance sofre, como algumas oscilações na qualidade do português e uma estrutura global que nem sempre está particularmente bem conseguida (há trechos bastante dispensáveis e chatos, a conclusão é deixada tão em aberto que mais parece um fim de capítulo ou um gancho para uma sequela, etc.).

Seja como for, é preciso ter em conta que se trata de uma primeira obra e, com isso em mente, há que reconhecer que Artiauri mostra que a autora teria potencial para fazer bem melhor depois do primeiro romance, uma vez corrigidas todas as falhas e erros de que este padece. E talvez seja pena que isso não tenha acontecido.

Republicado, com alterações, do e-zine E-nigma (2003).

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